mestrado em filosofia antiga

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO EM FILOSOFIA ANTIGA Autora: Sandra Adriana Fasolo Orientador Prof. Doutor Jayme Paviani

terça-feira, 1 de julho de 2008

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL.

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
A questão do não-ser no Sofista de Platão

Sandra Adriana Fasolo

Orientador: Prof. Dr. Jayme Paviani


Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Filosofia no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre, julho de 2003


Agradecimentos
Ao Prof. Dr. Eduardo Luft, Prof. Dr. De Boni, Prof. Dr. Nythamar de Oliveira, Prof. Dr. Pergentino Pivato, Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza, Prof. Dr. Sérgio Sardi, quero deixar expresso meus agradecimentos, quando de minha passagem por disciplinas da Graduação em Filosofia nesta mesma IES, pois suas aulas foram importantes para que eu pudesse perceber os diferentes caminhos que a Filosofia vai sutilmente desvelando.

À CAPES que financiou meus estudos.

Agradecimentos especiais
Ao Prof. Dr. Ernildo Stein, pelo incentivo inicial quando de minha entrada no Mestrado e sua orientação nos meus estudos sobre a angústia em Ser e Tempo de Heidegger. Ao Prof. Dr. Eduardo Luft, pelo incentivo em continuar trabalhando o pensamento de Platão, pelas sugestões e críticas ao texto da presente pesquisa, quero deixar aqui expresso minha sincera gratidão e admiração, pois sua excelência como professor foi norteadora de meu caminho filosófico. Ao Prof. Dr. Sérgio Sardi, pela orientação em Platão durante as cadeiras da graduação em Filosofia Antiga, cursadas nesta Universidade, agradeço igualmente a oportunidade de ter atuado como monitora em Filosofia Antiga bem como ao seu constante incentivo em cursar o Mestrado. Ao Prof. Dr. Marcelo Pimenta Marques da UFMG, especialista no pensamento de Parmênides e Platão, agradeço a imensa generosidade pelo acesso ao material bibliográfico de Filosofia Antiga, quando de minha estada na UFMG-FAFICH para pesquisa, bem como ao esclarecimento de questões referentes ao seu livro O caminho poético de Parmênides, o que me possibilitou pensar inúmeras questões referentes ao poema de Parmênides. Aos colegas, pelos «cafés filosóficos. À banca composta pelo Prof. Dr. Jayme Paviani e Prof. Dr. Eduardo Luft, ambos da PUC do Rio Grande do Sul, e pelo Prof. Dr. Inácio Helfer, da Unisinos, agradeço as críticas e sugestões colocadas durante a defesa da dissertação. E, principalmente, ao meu orientador, Prof. Dr. Jayme Paviani, que com paciência e uma suavidade aliada ao estudo sério, possibilitou que este trabalho fosse desenvolvido e concluído. Mais do que isso, mostrou-me que a sentença de Platão ‘as coisas belas são difíceis’ pode vir a tornar as coisas antes belas que difíceis, pois todos sabemos que a elaboração de uma tese acadêmica, às vezes, acaba por nos tirar o prazer da leitura dos textos filosóficos. Ao contrário disso, continuei a ver na filosofia, em especial a de Platão, muito mais beleza que dificuldades ou talvez uma beleza que nos faça contemplar o ‘difícil’ com um outro olhar. Obrigada, Jayme Paviani, sua orientação foi preciosa e fundamental na conclusão não só do meu Mestrado, como também de muitas outras coisas que levo comigo daqui para frente, na filosofia e na vida — na alma, diria Platão.

Aos meus pais, José Paulo e Maria Fasolo,
Pelo amor.
Também, ao nosso Nietzsche_ Nini_ ela companhia fiel nas madrugadas ao lado da leitura do Sofista, pois
"Reconheci no som de seu latido a voz de um amigo." Pitágoras

'É desse modo que respondo a pergunta que me formulas: «como devemos comportar-nos um para com o outro». Se realmente desprezas a filosofia, então diz-lhe adeus! Mas se junto de outro ou por ti próprio encontraste algo de melhor do que aquilo que te dei, então honra isto que encontraste. Se, por acaso, foram os meus ensinamentos que te satisfizeram, nesse caso sou eu o que deves honrar acima de tudo. Portanto, agora como sempre, levanta a tua voz e eu te seguirei. Honrado por ti honrar-te-ei; desprezado, abster-me-ei.' Platão. Carta II

SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.
CAPÍTULO 1 — A GÊNESE DA QUESTÃO DO NÃO-SER
1.1 O eleatismo: o ser e o não-ser de Parmênides
1.2 O ‘Parmênides’ dos sofistas
1.3 A recepção crítica de Platão a Parmênides

CAPÍTULO 2 — O SOFISTA E A QUESTÃO DO NÃO-SER
2.1 Ao não-ser não se pode atribuir predicado
2.2 Nem ser, nem uno, nem múltiplo

CAPÍTULO 3 — A APORIA DA IMAGEM: SER E NÃO-SER

CAPÍTULO 4 — O SER E O NÃO-SER E O ELEATISMO
CAPÍTULO 5 — O SER E O NÃO-SER E AS ESCOLAS FILOSÓFICAS
5.1 Os Filhos da Terra
5.2 Os Amigos da Formas

CAPÍTULO 6 — O SER E O NÃO-SER E OS GÊNEROS SUPREMOS
6.1 O Repouso e o Movimento
6.2 O Mesmo e o Outro
6.3 O não-ser como parte constitutiva do Outro
6.4 Os «não-seres» de Platão e dos sofistas
6.5 A aplicação do não-ser ao erro e ao discurso

CONSIDERAÇÕES FINAIS
GLOSSÁRIO

LISTA DE TABELAS
Tabela 1 — Estrutura do Diálogo Sofista por Diès
Tabela 2 — Estrutura do Diálogo Sofista por Cordero
Tabela 3 — Estrutura do Diálogo Sofista por Marques
Tabela 4 — Estrutura do Diálogo Sofista por Paleikat

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

INTRODUÇÃO
O que significa para Platão a expressão ‘não-ser’? Como se poderia compreender o que é o não-ser na filosofia platônica a partir do diálogo Sofista[1]? A princípio, através de uma primeira leitura do Sofista percebemos, porque Platão o diz claramente, que o não-ser constitui-se como parte[2] da natureza da Forma Outro (heteron), propiciando a existência de ‘todas as coisas’ e conservando a essência dentro da multiplicidade evidente da realidade sensível numa relação de ‘diferença’, de diversidade. Tal afirmação, contudo, não seria suficiente, pois dizer «o não-ser é parte constituinte da natureza do Outro» apresenta a resposta do pensamento de Platão à questão do não-ser, mas não esclarece os vários problemas que a envolvem tanto no inteligível como no plano do sensível. É necessário, se desejarmos uma compreensão mais profunda de um dos diálogos mais difíceis e complexos de Platão, divisar o caminho tomado pelo filósofo na elaboração do Sofista[3]. Aqui a recepção crítica de Platão ao contexto filosófico, em relação a Parmênides e aos sofistas, e a ordem escrita[4] da estrutura do texto permitem apontar para o percurso da filosofia platônica no Sofista. E, se Parmênides, como consta na tradição clássica do pensamento antigo, inaugura a teoria do ser através do poema Sobre a Natureza, de fato, é Platão quem, no Sofista, busca respostas para uma teoria do ser a qual possa demonstrar a possibilidade do discurso falso e a realidade do não-ser entre os elementos inteligíveis. Neste ponto, perguntamos: qual a relação do não-ser com o discurso falso? Podemos mencionar o próprio prólogo do diálogo, pois inicia com uma pergunta sobre quem seja o sofista, o filósofo e o político, o que os distingue? Platão trata de seis[5] tentativas de definições[6] sobre o sofista apresentando aspectos de como este «aparece» em sua arte ilusionista de produzir falsos discursos. Este ponto é essencial, pois há uma relação anterior a Platão — a partir de Parmênides — com a qual a impossibilidade de pensar o não-ser acaba por justificar o discurso falso como verdadeiro. De um lado, o texto do Sofista pretende demonstrar a possibilidade da falsidade da arte sofística e, de outro, estabelecer a realidade do não-ser entre os elementos do inteligível, até então negado pelos sofistas. Os sofistas se apoiavam na proibição eleata e ‘raciocinavam assim: se o erro tem por objeto o não-ser como poderá alguém pensar ou exprimir o erro, já que ninguém pode pensar ou exprimir o não-ser?’[7] E que ‘o argumento não é senão a transposição do ‘ser absolutamente uno’ dos eleatas para o plano lógico do discurso para confirmarem o individualismo dos sofistas e a teoria do homem-medida de Protágoras’[8]-[9]. Isto nos conduz a um primeiro raciocínio: se é assim, se há uma conexão entre o não-ser e aquilo que diz o falso, seria lógico pensar que Platão resolveria o problema atribuindo o não-ser à falsidade, entretanto, isto implicaria em estabelecer o falso como Forma inteligível, já que o não-ser é estabelecido como parte constituinte de uma das Formas supremas. Desse modo, nosso argumento se estrutura a partir de alguns pontos centrais: 1. O discurso falso ligado ao não-ser, como este não pode ser pensado, o outro não existe, logo Platão demonstra a existência de ambos, embora em «níveis» diferentes. 2. A contradição na estratégia com que os sofistas defendiam seus discursos: ao transpor o «absoluto parmenídico» para o relativismo de seus discursos os sofistas acabam por exercer uma opinião falsa até mesmo com a tese eleata. 3. Platão estabelece o não-ser como parte constituinte de uma das Formas supremas e prova que o discurso falso é possível não somente através da origem do problema — não-ser — mas onde todas as Formas supremas são indispensáveis para demonstrar a existência da falsidade, porém no âmbito do logos e não entre os elementos inteligíveis. 4. A existência relativa das Formas torna-se a «condição de possibilidade» para o falso, embora não vise o falso, de modo algum, para Platão. 5. A symploké permite ao filósofo uma aproximação do pensamento com as «essências», com o real realíssimo, para Platão, todavia, são as próprias Formas. 6. O sofista faz uma má apreensão das Formas, desordenada, devido a maneira como conduzem seu próprio pensamento relativista e, por isso, produzem o falso em seus discursos. 7. Se o não-ser é Outro o sofista poderia dizer que seu discurso sendo «outro» que não do autêntico filosófico também é verdadeiro, desde que «é» outro, isto deveria conduzir ao raciocínio de que apreendem a Forma-Outro, mas pressupomos aqui um outro tipo de opinião falsa da arte sofística: produz um 'outro' que não o Outro-Forma, fabricando, dessa maneira, um não-ser irreal o qual justificaria as falsas imagens, também produzidas pela sofística. 8. A partir disso, os não-seres serão o allós, outro que não as Formas, em detrimento do heteron, o eidos. 9. Há concordância de Platão com Parmênides, nesse sentido, quando ele cita duas vezes o mesmo fragmento do poema Sobre a Natureza. Esta é a única citação que Platão faz de Parmênides no Sofista e não vemos na posição platônica refutação, reformulação e muito menos parricídio. Perguntamos: como o não-ser vem a ser parte constituinte de uma Forma (eidos) Outro (heteron) possibilitando demonstrar a existência do discurso (logos) falso sem que este se constitua igualmente como uma Forma?[10] Esta é a pergunta que pretendemos desenvolver na nossa pesquisa procurando, na medida do possível, considerar os itens expostos no parágrafo anterior. Partimos da hipótese de que o não-ser não será uma Forma para o falso no inteligível, pois não concordamos que Platão tenha dito isto no Sofista, ou seja, não acreditamos inicialmente que Platão tenha abandonado a perfeição das Formas, já expostas no Fédon, no Fedro e na República, e, assim, pressupomos: o não-ser não pode vir a significar falsidade, mas unicamente «condição de possibilidade» por causa de sua existência relativa entre os elementos inteligíveis, os quais também são imprescindíveis para explicar como a falsidade «é» possível. Para o logos do sofista — ou daquele que não é um autêntico filósofo ou dialético — Platão demonstra a existência do discurso falso, sem comprometer a estrutura ontológica com a imperfeição que o dizer falso carrega em si mesmo. Por conseguinte, se nem tudo é verdadeiro como desejavam os sofistas, então existe o falso e, a existência de um método ao pretendente da sabedoria — o filósofo — torna-se necessária, daí a importância ímpar da ciência dialética[11], assunto também tratado no Sofista. É possível então retornar ao prólogo do diálogo, quando Platão tem em mente a distinção entre o filósofo, o político e, no nosso caso, principalmente, o sofista. Esta distinção dada através de uma diairesis que «separa» o sofista do filósofo fica implícita na passagem sobre a dialética como ciência suprema, esta é o caminho para orientar o logos do filósofo na busca da verdade — e a verdade para Platão são as Formas. Ressaltamos dois pressupostos do próprio Platão a se considerar: a certeza da existência de Formas numa realidade supra-sensível, entidades independentes da realidade sensível, e para as quais o filósofo deve ‘voltar’ constantemente seu pensamento com o fim de 'contemplar' as Formas — perfeitas — para uma aproximação com a verdade; deve-se considerar, além disso, Platão não está questionando «se» os sofistas dizem o falso ou não, muito embora o Estrangeiro e Teeteto usem uma estratégia no início do diálogo onde parecem hesitar diante de qual das definições seria a mais adequada ao sofista, podemos ver que Platão ao escrever o diálogo não coloca em questão saber se o sofista diz ou não o falso, ele parte da certeza da arte sofística como arte de produção humana de falsas ilusões. Há, portanto, duas coisas a serem presumidas antes de tudo: Platão tem certeza de que as Formas são o «real realíssimo» e de que os sofistas dizem o falso. Os especialistas em dado momento de suas análises tendem ou em dizer claramente: o não-ser é falsidade, como no caso de Diès e Cornford, ou deixar implícito o não-ser como o falso somente no âmbito do logos — somente no plano do discurso ou do pensamento — ainda assim suas conclusões colocam o falso como não-ser. No entanto, pensamos que a explicação para a falsidade não se dá em dizer que o não-ser é a falsidade, mesmo exclusivamente no âmbito do logos, e, sim, que a apreensão desordenada das Formas tem por conseqüência suas essências derivadas no pensamento em falsas imagens pela arte da sofística. As Formas não visam de modo algum a falsidade, o não-ser é parte constituinte da natureza do Outro e significa simplesmente a «diferença», não tem, portanto, a finalidade de produzir o falso, contudo é por meio da existência relativa de todas as Formas que o sofista pode desviar seu pensamento das próprias essências. Para desenvolvermos nossa pesquisa, procuramos, através do texto mesmo de Platão e de sua seqüência argumentativa, seguir o próprio percurso do filósofo com o intuito de percebermos, como já colocado na nossa pergunta, como o não-ser é estabelecido como Forma e de que maneira justifica o falso sem que ele mesmo seja significado de falsidade. Utilizamos principalmente o texto do diálogo seguindo preferencialmente a edição em português de Paleikat, contudo nos servimos da edição do especialista Francis Cornford, traduzida para o espanhol, e de duas edições francesas, a de Auguste Diès — clássica — e a mais atual, de Nestor-Luis Cordero. Estas edições foram usadas sobretudo para verificar ambigüidades entre as diferentes traduções em passagens específicas. Quando do uso de uma edição que não a de Paleikat anexamos a passagem no original em nota de rodapé, seguindo entre parênteses a referência à passagem citada através da abreviatura do diálogo e o início e término da mesma, como convencionalmente utilizada pelos especialistas. O primeiro capítulo, intitulado A gênese da questão do não-ser, expomos o contexto filosófico anterior a Platão, subdivide-se em: 1.1 O ser e o não-ser de Parmênides, porque a origem sobre o assunto se encontra no filósofo eleata através do poema Sobre a Natureza. 1.2 O ‘Parmênides’ dos sofistas, onde discorremos sobre o uso que os sofistas fizeram do não-ser através da via parmenídica e que interpretamos como sendo uma «opinião falsa», pois consideramos que o «ser absoluto» não poderia ter sido utilizado para justificar o discurso falso como verdadeiro, tendo em vista que o relativismo sofístico implica em multiplicidade, implica em que exista movimento no pensamento e na linguagem. Isto gera uma contradição se pensarmos no ser absoluto do eleata: imóvel, eterno e não-gerado. A partir disso: 1.3 A recepção crítica de Platão a Parmênides, sem colocar de lado a arte da sofística. Retomamos a questão colocada aqui na introdução através de relações com todo este contexto filosófico do primeiro capítulo. O segundo capítulo, O Sofista e a questão do não-ser, inicia com a passagem que abre o problema do erro e a questão do não-ser (Sof. 237a) onde pressupomos uma concordância de Platão com o texto citado de Parmênides e, alguns problemas em relação ao não-ser, subdivide-se em : 2.1 Ao não-ser não se pode atribuir predicado. 2.2 Nem ser, nem uno, nem múltiplo. No terceiro capítulo passamos a discorrer sobre A aporia da imagem do ser e do não-ser, colocando como um dos pontos centrais para compreender esta passagem a questão do «não-ser irreal» e pressupondo que este seja uma demonstração de opinião falsa dos sofistas, a qual explica como é possível que haja imagens visíveis se a falsidade não se constitui como um elemento inteligível. O «não-ser irreal» se ligará ao último capítulo quando elaboramos uma relação dos «não-seres» com a imagem e com o discurso falso a partir de Parmênides, pois pensamos que Platão concorda neste ponto com o mestre eleata e, por isso, mais uma razão para dizer que não houve um parricídio como o mesmo se encontra sustentado pelos comentadores da obra platônica. No quarto capítulo abordamos a clássica questão do «parricídio» de Platão contra o pai Parmênides, sustentada pela maior parte dos especialistas como uma verdadeira refutação de Platão à tese parmenídica, retomando o que foi dito no parágrafo anterior, nossa hipótese é a de que Platão concorda com Parmênides, pois os sofistas são os próprios «não-seres» através do allós em detrimento do heteron. Platão reformula a tese do eleata, mas concorda com este quando o cita em 237a, para retomá-lo em 258d por meio da mesma citação, quando então fornece uma das definições sobre o discurso falso. No quinto capítulo tratamos sobre a revisão das escolas filosóficas anteriores a Platão, esclarecemos que não nos detemos com um estudo específico sobre a quem exatamente o texto faz referência, mas nos centramos sobretudo no ponto central dessa longa passagem que pensamos ser o problema da radicalidade de cada escola: 5.1 Os Filhos da Terra, defendem unicamente o ser pela materialidade do corpo. 5.2 Os Amigos das Formas, defendem o ser exclusivamente por meio da alma — Platão procura mostrar aqui que aceitar algumas dessas teses significa aceitar algo extremo: ou há exclusão da doutrina da imobilidade ou há exclusão da doutrina do devir ou de que o ser se move em todos os sentidos. O sexto capítulo refere-se às passagens que estabelecem os gêneros supremos e sua relação com o ser e o não-ser: 6.1 O Repouso e o Movimento. 6.2 O Mesmo e o Outro. 6.3 O não-ser como parte constitutiva do Outro. 6.4 Os «não-seres» de Parmênides e Platão — aqui abordamos a concordância de Platão com o mestre eleata quanto à citação do poema Sobre a Natureza. 6.5 A aplicação do não-ser ao discurso. Elaboramos um glossário sobre os termos mais recorrentes dentro do texto, pois conceituá-los dentro do desenvolvimento do texto acabaria por prejudicar a seqüência lógica que nos propomos a seguir por meio das argumentações do próprio diálogo. Anexamos igualmente quatro estruturas do diálogo dos especialistas consultadas durante o trabalho de pesquisa, essas tabelas têm apenas o intuito de ilustrar as diferentes divisões, pois esquematizar o diálogo, todavia, iria contra a filosofia de Platão tendo em vista que a dialética envolve o movimento do próprio pensar e expor o texto de Platão em tabelas é ir contra todo o movimento que não pode estar inserido em estruturas rígidas e fechadas. Sou devedora das aulas de Conhecimento e Linguagem na Filosofia de Platão e Aristóteles, ministradas no PPG em Filosofia da PUC, pelo Professor Doutor Jayme Paviani e dos especialistas franceses: Monique Dixsaut, Monique Canto, Barbara Cassin, Pierre Aubenque[12], entre outros, em especial a Henrique de Lima Vaz, Auguste Diès e Nestor-Luis Cordero. Seguimos o método descritivo-explicativo, pois julgamos que confere com o fato de procurarmos descrever as passagens ao mesmo tempo em que buscávamos uma interpretação e uma possível explicação para o texto do Sofista. A relevância de abordar a questão do não-ser em Platão, ainda hoje, se deve à importância mesma do pensamento de Platão dentro da história da filosofia, há uma unanimidade em ser ele o fundador da metafísica ocidental. Desse modo, pensamos que pretender uma compreensão filosófica sobre o ‘não-ser’, o qual perpassa o pensamento de diferentes filósofos em acepções com múltiplos significados, deve, necessariamente ter como ponto de partida o fundador da metafísica, pois como dele disse Emerson: ‘Platão é a filosofia’. E, se ‘Parmênides nos ensina que é próprio dos caminhos humanos errar, é ele também quem mostra que vale a pena caminhar, pois há um caminho que efetivamente leva ao seu destino.’[13] Platão, por sua vez, nos ensina que é próprio do ser humano, não sem exceções — vide sofistas — desejar o caminho da verdade, pois se há realmente uma verdade a ser alcançada, há o pressuposto de um caminho que a constitua — e do qual nos é permitido pensar que o destino de cada ser se torna um «estranho entrelaçamento de ser e não-ser».

1 A GÊNESE DA QUESTÃO SOBRE O NÃO-SER

Antes de iniciarmos a nossa exposição descritiva-explicativa e as razões que conduziram Platão a escrever o Sofista precisamos retornar um pouco até o filósofo Parmênides de Eléia, pois muito embora seja Platão o fundador da filosofia, a questão do não-ser passa necessariamente pelo filósofo eleata através do poema Sobre a Natureza[14]-[15]. Cordero comenta sobre a história do texto de Parmênides dizendo que ‘uma das raras afirmações em torno da qual há unanimidade total entre os historiadores da filosofia antiga é a de que o pensamento de Parmênides teve uma repercussão súbita, magnífica e inquietante, sobre o espírito de seus contemporâneos e de seus sucessores imediatos’[16]. Para uma noção da dimensão da importância do eleata no nascimento da grande filosofia ateniense da época clássica e, através dela, de toda tradição filosófica do Ocidente, traduzimos aqui as palavras de Cordero, citando Guthrie: ‘a história da filosofia pós-parmenídica não é mais que uma série de ensaios, da parte dos filósofos naturalistas, para se esquivar à desagradável conclusão de Parmênides mediante uma mudança do monismo ao pluralismo’[17]. Portanto, se possuímos na tese de Parmênides a gênese da questão do ser e do não-ser, a qual será utilizada pelos sofistas para justificarem o discurso falso como verdadeiro, trazendo conseqüências inevitáveis para a filosofia de Platão, é possível igualmente dizer que possuímos no Sofista a tentativa ontológica do pensamento platônico para fornecer algumas soluções diante do impasse entre o monismo parmenídico e o pluralismo, pois agora trata-se de justificar a realidade do movimento, da mudança e mesmo da vida em detrimento do ser absoluto de Parmênides. Para percebermos um pouco desse contexto — Parmênides, os sofistas e Platão — o que segue neste capítulo pretende expor a tese de Parmênides, o uso que dela fizeram os sofistas e a recepção crítica de Platão frente às questões que se desdobraram a partir do eleata.
1.1 O eleatismo: o ser e o não-ser de Parmênides
Como toda essa relação do eleatismo com a questão do ser e do não-ser passa pelo poema Sobre a Natureza[18] do filósofo Parmênides[19] de Eléia pensamos ser justo começar por retomarmos os fragmentos ontológicos do poema — e algumas das interpretações feitas sobre o ser parmenídico — para só então abordarmos a questão diretamente no Sofista. ‘O poema de Parmênides foi escrito por volta da metade do século V a.C., e dele chegaram até nós 19 fragmentos, num total de 160 versos aproximadamente’[20]. Esses dezenove fragmentos traduzidos e ordenados por Diels-Kranz constituem todo o poema, o qual se divide, conforme a maior parte dos especialistas, em três partes: o Proêmio ou Prólogo (frag.1); a via da verdade (frags.2-8) aqui se encontram os dois caminhos para a investigação: o do ser e o do não-ser; e a via da opinião (frags.8-19) também traduzida por via da aparência ou da doxa, é o caminho dos mortais. O Proêmio [frag.1] mostra o Jovem sendo conduzido numa viagem[21] em direção à morada de uma deusa, esta irá lhe revelar o caminho para se chegar à verdade. A alegoria da viagem tem uma enorme influência[22] da Odisséia[23] de Homero, porém não é possível entrarmos aqui em detalhes sobre tais influências, somente as mencionamos porque desejamos destacar a herança mítica do poema. O prólogo ‘é carregado de uma simbologia mítico-religiosa pela qual ele [Parmênides] se apresentaria como um eleito, que tem o privilégio de alétheia (verdade/realidade) como os poetas inspirados e os líderes místicos’[24]. Sexto Empírico, ‘seguido de grande número de estudiosos modernos, considerou a viagem como um alegoria de iluminação, uma passagem da ignorância da Noite para o conhecimento da Luz, mas Parmênides inicia já a sua viagem em plena luz’[25]. Em ambos os casos, mítico e alegórico se aproximam já que a alegoria é uma das maneiras de expressar o mito, apresentando no Prólogo a via do pensamento «uma estrada principal», mas que, a nosso ver, ‘conduz para uma compreensão transcendente’[26]. Isto fica expresso pelas palavras da deusa ao dar as boas vindas ao Jovem, ‘pois refere-se às potências imortais que o acompanham e o conduzem a ela. [...] Ter como companhia o divino é condição e objetivo da busca do Jovem’[27].

A segunda parte do poema chamada via da verdade [frag. 2 – frag.8] mostra a deusa indicando os dois possíveis caminhos de investigação: o do ser e o do não-ser, sendo que o primeiro é o caminho que leva à verdade e o segundo é impossível de ser conhecido ou pensado. Diz Parmênides no fragmento 2: Anda daí e eu te direi (e tu trata de levares as minhas palavras contigo, depois de as teres escutado) os únicos caminhos da investigação em que importa pensar. Um, [aquilo] que é e que [lhe] é impossível não–ser, é a via da Persuasão (por ser companheira da verdade); o outro, [aquilo] que não é e que forçoso se torna que não exista, esse eu te declaro eu que é uma vereda totalmente indiscernível, pois não poderás conhecer o que não é — tal não é possível — nem exprimi-lo por palavras[28]. Nesse fragmento fica expresso: o ser é caminho que conduz à verdade, o não-ser não é possível de ser conhecido porque só aquilo que existe é possível pensar. Já no fragmento seguinte (frag. 3) Parmênides indica a afirmação central de sua doutrina: ‘pensar e ser é o mesmo’, também utilizada pelos sofistas para dizerem que todo e qualquer pensamento revela o ser e, portanto, é verdadeiro. Compreendemos esta passagem considerando que se somente o ser ‘é’ e se o pensar ‘é’ o mesmo que ser, logo o pensamento acompanha a via da verdade ensinada pela deusa, ou seja, o ser e o pensamento são o mesmo, assim o ser em Parmênides teria existência verdadeira só como tal: pensar — o ser como caminho para investigação indicaria unicamente o pensar. No fragmento 8, Parmênides define o ser e encontra nele a medida do pensar: ‘resta-nos assim um único caminho: o ser é. [...] Não lhe permitirei dizer nem pensar o seu crescer do não-ser. Pois não é possível dizer nem pensar que o não-ser é. [...] é necessário ser absolutamente ou não-ser’[29]. A exclusão obrigatória de um dos caminhos se apresenta aqui, ficando subentendido que se deve optar por um deles, logo os dois existem de alguma maneira, ainda que Parmênides tente negar o não-ser o tempo todo ele é apresentado como uma via que deve ser evitada — fica pressuposta sua existência. O poema termina com uma terceira parte que começa no penúltimo parágrafo do fragmento 8: é a via da opinião dos mortais, da aparência. Mas há já no fragmento 6 uma referência a esta via quando Parmênides diz: ‘Necessário é o dizer e pensar que (o) ente é; pois é ser, e nada não é; isto eu te mando considerar. Pois primeiro desta via de inquérito eu te afasto, mas também daquela outra, em que mortais que nada sabem erram, duplas cabeças, pois o imediato em seus peitos dirige errante pensamento’[30]. Observamos, no final desse fragmento, o mundo sensível de onde provém as ilusões e o distanciamento da verdade, mas também interditada por Parmênides como caminho de investigação. A nosso ver, isto aponta para o sensível como sendo todo ele opinião falsa, já que é pura ilusão, com exceção do pensar, só este ‘é’, daí a importância do fragmento 3: ‘pensar e ser é o mesmo’. Retomemos as principais referências dos fragmentos ontológicos: ‘o ser é’, ‘o não-ser não é’ e ‘pensar e ser são o mesmo’. Só a primeira ‘é’, a segunda não é possível de ser sequer pensada e o pensar é o mesmo que ser, isto é, só é possível pensar o que existe ou aquilo que é. Mas o que significa este ‘é’ para Parmênides? Os especialistas do pensamento parmenídico realizam diversas discussões em torno do sujeito do ser de Parmênides. O’Brien[31], por exemplo, analisa as interpretações dos principais especialistas os quais pressupõem que a verdade precisa ser expressa através do sujeito do verbo ser, pois a deusa fala várias vezes da ‘verdade’ notadamente (frag.1-2-5) e como a deusa pronunciou um verbo [é] para que esse verbo exprima a verdade é preciso porém lhe encontrar um sujeito. O’Brien se pergunta: qual é o sujeito das duas vias de Parmênides? Apresenta, em seguida, as diferentes respostas dos diversos comentadores recusando-as pelo fato de buscarem em Parmênides a verdade expressa por uma proposição. Nesse contexto de não concordância com tais interpretações, O’Brien cita Guthrie, Cordero, Aubenque, Robin e Diels-Kranz, criticando a todos em função de procurarem no ser parmenídico proposições que devem expressar o significado tanto do ser como da verdade a ser buscada pelo Jovem — uma proposição se constitui no mínimo de um verbo e de um sujeito. Mas por que pressupor que a verdade para Parmênides se exprime inevitavelmente sob forma de proposição? — se pergunta ainda O’Brien. Em seguida observa que não é assim para Aristóteles, nem para Heidegger e tampouco para o próprio Parmênides. Conclui dizendo que as duas vias (o ser é; o não-ser não é) apresentadas pela deusa se exprimem por um verbo sem sujeito[32]. Sem entrarmos detalhadamente em todas essas interpretações[33], muito mais analíticas que filológicas, considerando que a verdade deve estar expressa em uma proposição em detrimento de seu conteúdo mesmo, concordamos com a análise de O’Brien, pois pensamos que tais análises não mudam a gênese da questão: o ser de Parmênides ‘é’ absoluto ou uno e isto, a nosso ver, é anterior à questão do sujeito, seja qual for que os especialistas derivem a favor ou contra a alguma das vias. No Prólogo, lembramos que o Jovem [Parmênides] viaja para encontrar a verdade e é esperado por uma deusa em sua morada onde ela irá lhe falar sobre os dois caminhos de investigação. Não se pode esquecer: o Jovem não recebe os ensinamentos dentro do mundo dos mortais, ele é ‘transportado’ para um outro ‘mundo’. Se o Proêmio é uma alegoria e não deve ser interpretado de outra maneira poderíamos continuar a ler o poema até o fim como sendo alegórico, até mesmo porque expressões figuradas como as que constam no Prólogo percorrem todos os seus fragmentos, entretanto os especialistas tendem a ver no fragmento 1 algo ‘figurado’ e ainda que admitam influências míticas de Homero, Hesíodo, de rituais pitagóricos e até mesmo de rituais xamãs, atribuem a todos os outros fragmentos uma ‘racionalidade’ que foi a responsável pelo início da questão do ser e do não-ser na história da filosofia. Consideram, assim, todos os outros fragmentos como o começo da teoria do ser.
Concordamos que Parmênides é considerado o primeiro dentre os pré-socráticos a falar sobre o ser ligando-o a algo imaterial ou incorpóreo, contudo não parece justo julgar o poema conforme aquilo que se pretende extrair dele em benefício do que se quer afirmar, como fizeram os sofistas. Se os outros fragmentos não são exatamente uma alegoria devem conter algo que ultrapassa o texto como tal, mas podemos observar em todo o poema expressões e idéias figuradas, ou seja, alegóricas, não exatamente um discurso racional como o fará Platão muito mais tarde. Marques observa que ‘da interpretação que se tiver do Prólogo decorrerá a interpretação de todos os outros fragmentos’[34], assim, se desconsiderarmos a alegoria torna-se possível derivar todos os outros fragmentos para coisas que Parmênides talvez nunca tenha pensado como, por exemplo, proposições. Preferimos, portanto, respeitar a marca ‘alegórica’ do Prólogo e interpretá-la como uma marca ontológica[35] que afirma: o Jovem é ‘transportado’ para outro mundo, ficando expresso que a verdade para Parmênides não poderia ser encontrada no mundo dos mortais de onde provém o Jovem, mundo também interditado como acesso à verdade conforme consta no final do fragmento 6, outra razão para que a ‘viagem’ seja necessária. Parmênides não recebe tais ensinamentos no mundo dos mortais onde reside a doxa — também mundo interditado. É possível ponderar, além disso, que se para a doutrina de Parmênides só resta um caminho: o do ser, pois o caminho do não-ser é excluído, bem como a via da aparência, como possíveis acessos à verdade, e se ‘pensar e ser é o mesmo’, constituindo o pensamento como único caminho válido, só resta o pensar como aquilo que realmente ‘é’. Há uma procura, como já mencionamos pelo sujeito de ser (eînai), mas talvez devêssemos também perguntar ‘onde’ se encontra este ser e este pensamento que são tidos como o mesmo em dois sentidos: em relação à verdade e em relação ao mundo em que os ‘mortais de duplas cabeças erram’? Parece haver referência à existência de dois mundos: um de onde provém o ser e o pensar verdadeiros e outro onde o pensar se deixa levar pela doxa. Ora, ‘os mortais’ residem no segundo, só Parmênides ‘visitou’ o primeiro. Lembremos aqui que alétheia pode ser traduzida tanto por verdade como por realidade, os significados, se ligados um ao outro, podem dizer: a verdade é a realidade. A doxa é caminho oposto à verdade, logo não-realidade. A verdade procurada pela via do pensamento implicaria a realidade empírica, o que entra em contradição, pois o empírico é tido como doxa. Onde podemos encontrá-la então? No pensamento dirá Parmênides. Mas o pensamento é o mesmo que ser e o ser é uno — eis a origem da questão. Além disso, se as coisas que este pensar pode chegar a investigar estão dentro do mundo da doxa, então como admitir um pensar verdadeiro que estaria o tempo todo imerso num mundo de ilusões como Parmênides parecia conceber e condenar o sensível devido ao ‘fluir’ constante? Igualmente expresso no final do fragmento 6? Nosso intuito não é ir contra as interpretações dos especialistas da filosofia parmenídica, somente desejamos indicar que vemos no ser de Parmênides um ser transcendente ou metafísico e, nesse sentido, concordamos que seja o princípio de uma teoria do ser e que o ser possua o sentido de verdade. Cornford diz que o ser uno de Parmênides não era material e não poderia assim gerar um mundo natural, ‘não material’, no sentido de que não era um corpo perceptível no espaço[36]. Ora, um mundo que está além do material ou do fenomênico está longe de ser o mesmo mundo dos mortais onde efetivamente é o sensível. É claro que podemos ver no pensar algo não imaterial, incorpóreo, mas se o ser é absoluto e retomarmos aqui o fragmento 3: ‘pensar e ser é o mesmo’, fica difícil de admitir um pensar absoluto. Como o pensar poderia ser verdadeiro se o ser está imerso num mundo interditado e tido como opinião falsa? Parece contraditório e mesmo impossível que o ser sendo absoluto e imóvel possibilitasse o pensar e a multiplicidade. Isto, se levado às últimas conseqüências, seria como dizer: o homem está condenado a viver num mundo de falsas opiniões. Ou antes ainda: o absoluto da tese de Parmênides sendo fixo e imóvel não possibilitaria o devir do pensar. Não vemos no Proêmio uma simples alegoria, mas antes uma forma metafísica de compreender o ser absoluto de Parmênides — provavelmente por isso a alusão à deusa, a viagem a um ‘outro mundo’, a proibição pelo mundo da aparência e assim a condenação do devir e da multiplicidade como acesso à verdade. O problema maior talvez não seja o fato de o Proêmio ser uma alegoria e os outros fragmentos não o serem, mas em ‘ser absoluto’. Já Aristóteles[37] e Nietzsche[38], abordaram o problema do ser uno parmenídico em oposição à multiplicidade do sensível na tentativa de entender o que é o ‘ser’ ao qual Parmênides se refere. Isso nos leva a ponderar que se o ser é absoluto, uno e imóvel, todo o sensível é negado, inclusive o pensamento e a linguagem, pois se é imóvel como admitir o devir e o movimento? O ser absoluto de Parmênides não faz sentido para explicar a ordem de um mundo que não seja aquele visitado pelo Jovem numa viagem que transcende o sensível, pois referindo-se a uma cosmologia metafísica tornaria impossível não somente a linguagem em qualquer discurso, falso ou verdadeiro, mas impossibilitaria a existência do mundo em todos os sentidos — da própria vida. Se interpretado sob este ponto de vista, o ser uno de Parmênides através da negação do sensível, torna o mundo sensível: ou um lugar completamente falso ou inexistente devido à imobilidade. Se derivamos isso para o pensar e se pensar e ser é o mesmo então o pensar é imóvel, fixo, eterno, o pensar apenas ‘é’, mas não poderia vir a investigar qualquer coisa que fosse sem o ‘movimento’ que o constitui como tal — Parmênides não teria escrito o poema. De qualquer forma as posições são extremas em função do absoluto e nenhuma delas poderia ter sido utilizada pelos sofistas para negarem o dizer falso através do verso parmenídico ‘o não-ser não é’, pois se de um lado possuímos a hipótese do mundo sensível como falso — desde que é aparência — e de outro inexistente — considerando tal fixidez, imobilidade e unidade que ficam expressos pelo absoluto — os sofistas não poderiam ter transposto tal absoluto para o plano do discurso para justificarem seu relativismo.

1.2 O ‘Parmênides’ dos sofistas
Nesse ponto é importante realizarmos a passagem das conseqüências do poema parmenídico para a atividade dos sofistas numa tentativa de compreendermos a razão que conduz Platão a retomar o poema e estabelecer sua relação com o discurso falso e, a partir disso, estabelecer no Sofista a realidade ontológica do não-ser entre os gêneros ou Formas supremas. É preciso perguntar aqui: por que Platão precisou resolver duas coisas — provar a existência da falsidade e estabelecer uma realidade ontológica para o não-ser — a princípio, bastante diferentes e para isso retomar o poema de Parmênides de Eléia? Dito de outra maneira: por que há um enorme empenho de Platão em provar a realidade do não-ser, enquanto Forma, no mesmo diálogo em que trata sobre o problema do discurso falso atribuído aos sofistas? A nosso ver, há uma razão que se volta diretamente para o fundamento da filosofia platônica, a qual pode ser observada na afirmação que caracteriza o dizer falso como aquele que ‘diz outra coisa que aquela que é’ (Sof. 263b) porque essa caracterização do dizer falso aponta para outro pressuposto de Platão: a de que se conhece as coisas que são, o que torna esse conhecer condição para que se possa perceber quando alguém fala outras coisas daquelas que são — as quais constituem o próprio erro ou a opinião falsa. Mas como saber que realmente as conhecemos?[39] Pela dialética — responderá Platão e, talvez, este seja o principal motivo a conduzi-lo a querer provar a existência da possibilidade do discurso falso. A dialética platônica não poderia correr o risco de ser confundida com a erística e, assim, não pode aceitar a não existência da opinião falsa, pois, do contrário, o exercício dialético como método para ascender às Formas puras, e assim à verdade, não faria sentido algum, pois se a dialética platônica é o caminho do homem sábio que deseja ascender às verdades eternas, diferente da herança erística da qual muitos eleatas foram discípulos, então não pode ser vista como mero jogo de disputa verbal pela própria disputa (Sof. 224e—226a). Por sua vez, a erística traz como conseqüência o relativismo, este não leva em consideração o conteúdo do discurso. Ora, é no conteúdo do discurso que a verdade pode ser encontrada e se constitui no objetivo supremo desejado pelo filósofo, mas para os sofistas o objetivo era outro: vencer na disputa verbal sem se importar com a verdade. Assim, é todo o pensamento filosófico de Platão que está em jogo. Qual o problema enfrentado por Platão diante disso? Os sofistas para defenderem suas teses da acusação da falsidade de seus discursos se apoiavam no centro da doutrina de Parmênides: ‘o não-ser não é’ e do ser absoluto parmenídico onde está a base, segundo a tradição clássica filosófica, para negarem a possibilidade do discurso falso e dizer que tudo, então, é verdadeiro. Se tudo é verdadeiro a dialética de Platão bem como o inteligível não fazem sentido, não são necessários. Se retornamos um pouco, percebemos que ‘se dizemos que o sofista é um ‘artífice de ilusão’ e portanto, de falsidade e erro (Sof. 235 e ss.) somos necessariamente levados a colocar a questão da possibilidade do ‘dizer falso’ (Sof. 236c)’[40].

No entanto, os sofistas negam a falsidade fundamentando-a na afirmação de Parmênides: ‘Jamais obrigarás os não-seres a ser; Antes afasta teu pensamento desse caminho de investigação’[41] (Sof. 237a). Daí os sofistas tiram suas justificativas através do seguinte raciocínio: se não se pode exprimir o não-ser, sequer pensá-lo, logo o que é pensado e dito é, e é verdadeiro não podendo então existir a falsidade «erro». O ser absoluto de Parmênides acaba por fornecer a base do relativismo para os argumentos da sofística, ou, em outra palavras, o que existe, existe de forma verdadeira, o que não existe sequer pode ser pensado, portanto, todo pensamento pensado não pode conter erro. Lima Vaz coloca a questão assim: ‘se o erro tem por objeto o não-ser, como poderá alguém pensar ou exprimir o erro, já que ninguém pode pensar ou exprimir o não-ser?’[42]-[43]. A Via interditada parmenídica do sensível se constitui no próprio mundo onde os sofistas se vangloriam de ser todo ele verdadeiro ao transpor o ser uno para os seus discursos. Porém, a nosso ver, o ser sendo absoluto não poderia se dissolver na multiplicidade sensível sem que perdesse sua unidade e deixasse de ser uno. Se os sofistas utilizassem a primeira hipótese: o mundo como falso, não poderiam dizer que tudo que é dito é verdadeiro, por outro lado, se transpusessem o ser absoluto dos eleatas para o discurso não se poderia admitir o relativismo e considerar o homem como a medida de todas as coisas, pois onde estaria o devir do próprio pensamento e a multiplicidade de toda essa ‘medida’? O mundo proposto por Parmênides é impossível, a verdade só poderia ser encontrada onde o ser absoluto se encontrasse, mas como poderia alguém encontrá-lo sem que pudesse fazer uso de um certo movimento do pensar? Como este pensar poderia pretender investigar qualquer coisa que fosse se é absoluto, fixo, eterno, sem devir? E se este devir for aparente, tudo o que se passa no sensível também o é, logo, tudo é falso. É possível, também, estender o raciocínio: se o não-ser não existe e não pode ser expresso pelo discurso, por que razão o ser sendo absoluto poderia ser expresso por um discurso e um pensamento que estão em devir e imersos na multiplicidade do sensível? Além disso, se Parmênides proíbe este caminho, logo proibiria o discurso falso dos sofistas. Uma explicação possível é a de que os sofistas não se referem ao ser num plano metafísico, como pensamos que o texto de Parmênides quis colocar a questão, e sim num nível do discurso. Como fica difícil de admitir a justificação do relativismo através do absoluto, é provável que os sofistas tivessem consciência disso e assim: utilizavam-se da via da aparência, que é a dos mortais, e dentro da via da verdade, onde estão os dois caminhos ser e não-ser, optavam falsamente pelo ser negando o caminho que na verdade os conduz: a via da doxa. Invertem a questão transportando o ser uno e absoluto para o plano do discurso, ‘pensar e ser é o mesmo’, porém este ser não poderia ser o ser absoluto de Parmênides, do contrário, não poderia haver multiplicidade no discurso. Deturpam, pois a Parmênides. Eis o verdadeiro parricídio cometido contra Parmênides — ou, eis o ‘Parmênides’ dos sofistas.

1.3 A recepção crítica de Platão a Parmênides
A doutrina parmenídica, referindo-se ao ser como absoluto, deveria levar ao raciocínio de que sendo absoluto não poderia conter o relativismo, ao contrário, acaba por conduzir à tese dos sofistas, mas somente porque estes é que a tornam uma espécie de ‘opinião falsa’. Platão, provavelmente, percebeu a estratégia sofística aplicada ao pensamento parmenídico através do poema Sobre a Natureza. Esta é a principal conseqüência da doutrina parmenídica[44] para o pensamento filosófico de Platão[45], pois ela depõe contra as Formas na medida em que estas não se fazem necessárias se se admitir que, a partir dos sofistas, tudo é verdadeiro. Por conseguinte, para Platão a questão assume a seguinte dimensão: ‘é que se toda proposição é verdadeira nenhuma o é’[46] e se tudo é verdadeiro não haveria razão em ascender às Formas puras, não precisaria existir a ciência suprema — a dialética — ou as Formas, o problema é central e vemos Platão tentando salvar seu projeto filosófico — eis porque Platão quer provar a possibilidade do discurso falso dos sofistas. Além disso, se é pela dialética, conforme Platão, que se pode chegar a julgar o verdadeiro e o falso, se pode saber quando alguém fala sobre coisas que não são, é necessário que o discurso falso seja possível, é necessário também que exista algo que justifique essa falsidade sem comprometer a estrutura ontológica, ou seja, sem que a realidade do não-ser venha ela mesma a significar o falso. Disso decorre: provando a falsidade no discurso dos sofistas prova-se que nem tudo que é pensado e dito é verdadeiro, logo, existe um método para o pretendente à sabedoria e este, para Platão, somente pode ser encontrado por meio das Formas (eidos) e onde a dialética representa este método e um papel ímpar: ‘não se pode praticar a dialética sem as Idéias e não se pode alcançar as Idéias (Formas inteligíveis) sem a dialética’[47], do contrário, o relativismo da sofística acaba por depor contra o estatuto ‘real’ e ontológico das Formas. A relação do sofista com a opinião falsa é perspectiva do próprio Platão, o sofista é um ilusionista da verdade, pratica a opinião falsa. Sob o ponto de vista do próprio sofista não há o não-ser, logo não há discurso falso e todo pensamento e discurso exprimem a verdade. O ponto de vista de Platão sobre o não-ser será: é preciso que de uma certa forma o não-ser se estabeleça como realidade entre as Formas supremas como condição de possibilidade para o próprio movimento do pensar do dialético e, posteriormente, forneça condições para demonstrar a possibilidade do discurso falso. Se tudo é verdadeiro não é preciso que exista uma ciência suprema para saber distinguir o verdadeiro do falso. Igualmente não é necessário realizar a distinção entre o filósofo-dialético e o sofista-erístico: a verdadeira forma do não-ser relativo que será estabelecido vem em favor do autêntico filósofo dialético e ‘contra’ a erística dos sofistas. A partir dessas considerações é possível dizer que para os sofistas a dialética platônica não faz sentido se antes de qualquer coisa a verdade já se estabelece no sensível e tudo é verdadeiro; é possível também dizer que para Platão será preciso provar que o sofista detém a arte ilusionista, o sofista é um criador de falsas imagens e, no plano do discurso, de falsas idéias — Platão terá que necessariamente começar pela origem da questão: pelo não-ser parmenídico. Logo, a passagem que abre a questão do eleatismo e do não-ser (Sof. 237a) será igualmente o nosso ponto de referência dentro do diálogo Sofista — tendo em vista, como já mencionamos no início deste capítulo, que a gênese de todo o problema se encontra já no filósofo eleata.
O Sofista inicia com Platão tentando definir a sofística, mas ao avançarmos no texto podemos observar uma analogia transposta para um plano de estruturas ontológicas reais[48] onde as questões referentes ao mundo das Formas deveriam poder justificar o problema da opinião falsa, já tratada no Teeteto, com vistas, portanto, a uma explicação de questões referentes à realidade sensível. Torna-se importante mencionarmos o prólogo do diálogo, este se dá entre os personagens Teodoro de Cirene, Teeteto e Sócrates, numa conversa introdutória com o objetivo de chegarem a uma definição do sofista, mas Teodoro leva consigo um hóspede e o apresenta a Sócrates, este receia que o hóspede, Estrangeiro de Eléia, possua o mesmo espírito de discussão dos que vêm de Mégara — mesma terra de Parmênides de Eléia — e que seja um erístico, motivo pelo qual Sócrates teria ficado receoso. Teodoro responde, contrariamente, que o Estrangeiro tem algo de divino, é um filósofo, indicando que não se deve confundi-lo com um erístico. O diálogo seguirá com o próprio hóspede de Eléia perguntando sobre quem seja o sofista (Sof. 216a — 218b) ou antes: de que maneira o sofista e o político podem se distinguir do filósofo — se é que se distinguem? (Sof. 216d). Platão introduz outro ponto essencial que se interligará com todo o texto: a conversa principia em definir o sofista quando Platão tem em mente a busca de uma estrutura ontológica do mundo das Formas. Todavia existe algo que deve distinguir o filósofo do sofista. Quem é o sofista? Quem é o filósofo? Platão fará seis tentativas de definir o primeiro antes de colocar o problema do erro e a questão do não-ser (Sof. 237c). A relação central que está por trás dessa tentativa de definição do sofista[49] ‘que se apresenta aparentemente como o objeto principal do diálogo’[50] quer demonstrar a possibilidade de provar o relativismo da sofística e preservar ‘a vida do sábio platônico que está em jogo’[51]. O filósofo deverá se distinguir do sofista pelo uso da dialética, diferentemente dos que usam a erística. Para Platão a dialética tem um grande objetivo: a sabedoria que só o autêntico dialético pode chegar a ascender. O sofista, contrariamente, tem o poder de criar ilusões, produzir falsas imagens e, por isso, não é um autêntico dialético — o sofista pratica a opinião falsa, o erro ou a falsidade em benefício próprio. Consequentemente, demonstrar a existência da opinião falsa é distinguir as diferenças entre o autêntico filósofo e o sofista e fixar o sentido da filosofia platônica. Nessa altura é possível retomar a questão principal do nosso objeto de pesquisa: como Platão demonstra a existência da opinião falsa, atribuída especialmente à atividade dos sofistas, ao estabelecer a realidade do não-ser relativo como forma (eidos) dentro da estrutura ontológica, sem que o não-ser venha ele próprio a significar falsidade? A questão envolve alguns pressupostos do próprio Platão. Neste caso, entendemos por pressuposto um provável raciocínio que Platão pudesse ter feito em relação à opinião falsa e à questão do não-ser ao elaborar o Sofista. Sabemos, contudo, não ser possível uma demonstração direta de tais ‘pensamentos’ como, por exemplo, atestá-los através de passagens da obra platônica. Ainda assim pensamos apontar para prováveis raciocínios refutados devido às conseqüências explicadas a seguir. Comecemos com o primeiro deles: Platão não poderia admitir uma forma de não-ser — absoluta — como significando falsidade para provar que a opinião falsa existe dentro de uma estrutura metafísica. Por que julgamos essa hipótese excluída? Porque estabelecer a opinião falsa como forma seria igualmente adotá-la como essência e isto teria como conseqüência: ascender às Formas puras seria ascender, não somente à verdade[52], mas também ao erro. Como a verdade, a justiça, enfim, as Formas abstratas de valores, admitiriam entre si a falsidade? A refutação é óbvia e sequer é colocada em qualquer parte do texto do diálogo. Platão precisará resolver o problema sem atribuir ao não-ser um eidos de falsidade porque o mundo das Formas acabaria por conter em si a imperfeição e não podemos esquecer que o inteligível era para Platão o mundo perfeito das idéias. O segundo pressuposto excluído é que, por um caminho contrário ao anterior, Platão não poderia justificar a falsidade atribuindo sua origem exclusivamente ao sensível. Pois se o dizer (logos) envolve o pensamento tanto do sofista, dizer falso, como em relação ao pensar platônico, que ascende à verdade das Formas puras, ao tomar esse caminho acabaria por negar sua própria dialética[53]. Dito em outras palavras, ao relegar o pensar e o dizer ao sensível, isto teria que valer para qualquer pensamento[54] e discurso, tanto do sofista como do autêntico filósofo platônico, resolveria o problema da sofística mas, por outro lado, negaria a correspondência entre o pensar e as idéias — as quais constituem parte central da dialética. Sendo assim, o dizer falso não pode ser explicado por uma via que depõe contra o ‘diálogo interior e silencioso da alma consigo mesma, que chamamos pensamento’ (Sof. 264b) e que, a nosso ver, reflete o processo da dialética platônica dentro do pensamento do verdadeiro filósofo. Com a exclusão desses pressupostos, Platão possui atrás de si os caminhos já percorridos em outros diálogos, no Parmênides[55], por exemplo, não há ainda uma reformulação da tese parmenídica e, por isso, Platão não poderia inserir movimento entre as Formas, sem o qual pensamos não ser possível reformular o ser absoluto de Parmênides e estabelecer Formas relativas. No Teeteto Platão faz uma aproximação do erro com o não-ser, mas a refuta sem apresentar ainda uma possível solução. No Sofista, precisará resolver todas estas questões estabelecendo uma estrutura ontológica onde o não-ser deverá estar inserido sem que seja fixo, imóvel, absoluto — pois negaria a dialética que procede pelo avanço do pensamento — sem que o não-ser seja uma Forma que corresponda à falsidade — pois acabaria por refletir um eidos de falsidade e imperfeição — e sem que seja atribuído exclusivamente ao sensível — para não ir contra os pressupostos de sua própria filosofia.
2 O SOFISTA E A QUESTÃO DO NÃO-SER
A passagem do diálogo Sofista onde Platão introduz o problema do erro e a questão do não-ser se encontra em 236e — 237a, que citamos para abrir este capítulo. Diz, Platão através da fala do Estrangeiro:

Estrangeiro: _ É que, realmente, jovem feliz, nos vemos frente a uma questão extremamente difícil; [...] Que modo encontrar, na realidade, para dizer ou pensar que o falso é real sem que, já ao proferi-lo, nos encontremos enredados na contradição? [...] A audácia de uma tal afirmação é supor o não-ser como ser; e, na realidade, nada de falso é possível sem esta condição. Era o que, meu jovem, já afirmava o grande Parmênides, tanto em prosa como em verso, a nós que então éramos jovens:
“Jamais obrigarás os não-seres a ser;
Antes, afasta teu pensamento desse caminho de investigação.” (Sof. 237a)
[56]-[57]

Essa passagem ilustra o percurso inicial escolhido por Platão para resolver a questão do não-ser e da possibilidade do discurso falso. Platão mostra que seguirá numa linha do filósofo eleata[58], embora no decorrer do diálogo estabeleça Formas relativas. Elaboramos aqui uma hipótese, diversa dos comentadores, Platão estaria concordando com a citação que faz do texto de Parmênides sobre os «não-seres» quando se utiliza do fragmento do texto do eleata, não seria um parricídio, ao contrário, estaria neste ponto, concordando com o verso citado. Explicaremos isto no último capítulo, pois a segunda vez em que a mesma citação é feita pelo Estrangeiro, encontra-se num momento do diálogo em que os «não-seres» vêm ligados ao discurso falso, exporemos o assunto no final do capítulo seis. Aqui, pretendemos somente expressar a hipótese de concordância de Platão com Parmênides quando o cita. Na fala do Estrangeiro (Sof. 237a) se encontra a pergunta de nossa pesquisa descrita no próprio diálogo, ou seja, demonstrar a possibilidade do discurso falso, sem colocá-lo como uma Forma entre os elementos do inteligível, se apresenta aqui formulada, de outra maneira, agora pelo Estrangeiro: 'Que modo encontrar, na realidade, para dizer ou pensar que o falso é real sem que, já ao proferi-lo, nos encontremos enredados na contradição?' (Sof. 237a). Tal contradição: 'supor o falso como real', traz subjacente, ao problema do ser e do não-ser, o das falsas imagens. Como é possível que o falso exista e não se constitua como uma Forma? — como o 'real'? O falso como o 'real realíssimo', implica numa contradição para a filosofia do próprio Platão: colocar o falso como eidos seria, de fato, contradizer a perfeição no inteligível já afirmada em outros diálogos como, por exemplo, na República. Assim, 'supor o falso como real', significaria que os sofistas esperavam que Platão ao estabelecer a realidade do não-ser precisasse, necessariamente, colocá-lo como a própria falsidade entre os elementos do inteligível contradizendo a perfeição das essências. Isto pode ser explicado, se considerarmos o contexto filosófico já exposto no primeiro capítulo: se para os sofistas o não-ser é o falso, desde que ‘raciocinavam assim: se o erro tem por objeto o não-ser como poderá alguém pensar ou exprimir o erro, já que ninguém pode pensar ou exprimir o não-ser?’[59] A partir do raciocínio dos sofistas expressar o não-ser seria expressar o erro, a falsidade, para Platão isto faria da existência do não-ser um eidos para o discurso falso. De que maneira, portanto, afirmar o não-ser sem admitir, por essa lógica de um argumento que vem pela tradição, a falsidade entre as essências? A contradição se refere à própria conseqüência implícita para o pensamento platônico a partir do modo como os sofistas derivaram o não-ser. Assim, a pergunta da nossa pesquisa possui por trás o problema da contradição para a filosofia mesma de Platão. No entanto, como poderá ser constatado no decorrer do nosso texto, onde descrevemos o diálogo, Platão consegue resolver dois problemas centrais, o do não-ser e o do discurso falso, sem cair em contradição com o seu próprio pensamento já desenvolvido em diálogos anteriores, de outro modo, sem abandonar as essências perfeitas e eternas. Quando o Estrangeiro diz: ‘nada de falso é possível sem esta condição’(Sof. 237a), perguntamos: qual condição? A de supor o não-ser como ser, mas Platão resolve a questão e a possibilidade quase certa de uma contradição implícita para o pensamento platônico da perfeição das «idéias», que os sofistas talvez pressupusessem iminente — o falso como eidos — estabelecendo a Forma do não-ser sem colocá-lo como falsidade, isto é, o não-ser não será o falso e o falso não será um eidos. Portanto, por trás do discurso falso e do não-ser há a tentativa de Platão em não entrar ele próprio no que seria uma contradição o que o colocaria no nível dos sofistas, já que estes eram acusados pelas antilogias. Lembramos o já exposto no primeiro capítulo: negar a existência do não-ser acaba, segundo os sofistas, por negar a possibilidade do dizer falso tornando tudo que é pensado e dito verdadeiro. Platão precisa demonstrar a realidade do não-ser sem seguir o argumento da arte sofística: de que o não-ser seja propriamente o falso. A contradição refere-se, sobretudo, a não estabelecer uma Forma para o falso, seria um contra-senso se Platão assim procedesse, pois estaria — e isto é evidente — criando uma Forma em favor da atividade sofística, tanto combatida por ele em várias passagens de sua obra. Para não ir contra a sua própria filosofia, Platão precisa dar uma resposta para uma imagem que ele supõe falsa, todavia, existente no sensível, porém não derivada de uma «contemplação» original das essências. Por essas razões, podemos argumentar também que a referência a Parmênides, em 237a, não é uma refutação, pois a origem do não-ser[60] como sendo a falsidade, não pode estar em Parmênides, considerando que este se limita a negar a existência do não-ser como via de acesso a qualquer investigação, não nos parece que Parmênides tenha ele mesmo associado o não-ser à falsidade, desde que nega que possa ser pensado ou conhecido como poderia ser utilizado para dizer o falso? — só seria possível se associássemos o não-ser à doxa e ao sensível, mas para isso Parmênides teria que ter atribuído aí ‘existência’ ao não-ser, coisa que realmente o eleata nega. Se existe uma ligação do não-ser como aquele que diz o falso[61], remonta à deturpação da doutrina parmenídica realizada pelos sofistas para justificarem seus discursos como verdadeiros.
Portanto, não seria uma referência, na passagem do eleata citada por Platão, a uma falsidade entre os elementos do inteligível. A tese do não-ser como justificação para o erro como verdadeiro, «opinião falsa», é derivação feita pelos sofistas, provavelmente para 'forçar' Platão a admitir uma Forma para o falso através do não-ser. Mas que implicações possui realmente tudo isso para Platão? Quando Platão faz o Estrangeiro ‘concordar’ com Parmênides (Sof. 237b — 238d) o faz para mostrar a impossibilidade de falar sobre o não-ser sem que se entre em contradições já ao mencionar não-ser, pois ainda que Parmênides proíba o caminho do não-ser necessita do dizer para tal, além disso este caminho interditado está dentro da via da verdade, portanto, é um caminho que além de considerado existente, fica subentendido existir nele alguma verdade, ainda que indizível. Podemos também argumentar que se é possível falar sobre o que não existe, ainda que seja para negar sua existência isto implica em uma certa atitude sofística, como fazer uso da opinião falsa considerando ser preciso antes ‘criar’ e ‘atribuir-lhe’ existência para só então, depois, poder negar de forma absoluta — como produzir falsas imagens, embora não acreditamos que essa fosse a intenção do filósofo eleata, pois muito embora o poema apresente problemas, Parmênides, como Platão, estava em busca da verdade. A audácia não fora exclusividade de Platão ao supor a existência do não-ser, pois já fora em um certo sentido para Parmênides, já que não se pode proibir o inexistente ou conceder-lhe alguma forma de predicação como, por exemplo, indizível. Também há uma audácia latente nos sofistas, sabem do exercício de seu discurso falso e o sustentam como verdadeiro, não seguem o ser absoluto de Parmênides, tornam-o, ao contrário, relativo e múltiplo, evidentemente repleto de multiplicidade se nos fixarmos no sensível e, por isso mesmo, impossível que seja absoluto. Soma-se a isso que sendo absoluto acabaria por negar o devir do pensamento. Desse modo, se os sofistas se utilizam da proposição: o ser é «verdadeiro» considerando que ‘pensar e ser é o mesmo’, daí a defesa que fazem de suas teses relativistas, entram em contradição, pois o ser absoluto de Parmênides não admite multiplicidade ou relativismos já que é absoluto, imóvel, fixo e eterno. Assim, o pressuposto de que tudo é verdadeiro a partir da negação do não-ser é apenas uma estratégia do pensar sofista para fundamentar a falsidade e torná-la ‘verdadeira’. Considerando que o problema está no ser absoluto de Parmênides, os sofistas fingem ignorar e usam o caminho proibido para se justificarem e confirmarem o ser absoluto como verdade em seus discursos, provavelmente sabendo da impossibilidade de tal tese. Se resta para Parmênides o ser absoluto quando todo o sensível seria ilusão e caminho dos mortais, até porque o Jovem é levado para outro mundo para encontrar o caminho da verdade, resta para os sofistas o caminho dos mortais, do erro e da falsidade proclamado como verdade e fundamentado em uma falsa afirmação parmenídica. Mas quando a proclamam através do fragmento 3 de Parmênides: ‘pensar e ser é o mesmo’, Platão percebe nesse jogo um pensar, relativista, através da arte do simulacro dos sofistas, e ser, um ilusionista da verdade, é o mesmo, desde que se trata realmente dos sofistas que reproduzem discursos do próprio sensível. Resta para Platão abordar a tese de Parmênides, pois fornece aos sofistas um modo para se manterem em suas teses relativistas, negarem a falsidade e assim instaurem o descrédito da metafísica platônica. Portanto, o ser absoluto de Parmênides não poderia jamais ter servido de apoio aos sofistas[62].

2.1 Ao não-ser não se pode atribuir predicado
No Sofista, passagem 238d, o Estrangeiro relembra novamente o poema Sobre a Natureza, dizendo que o não-ser é impronunciável, inefável e inexprimível, para em 239a perguntar se ao se ‘tentar aplicar-lhe este ‘é’ não seria contradizer as proposições anteriores, pois este ‘é’ expressa unidade. Argumentará em seguida que para definir o não-ser, seja como uno ou múltiplo, se está falando sobre algo que é absolutamente impossível de falar. Platão alterna seus argumentos ora ‘concordando’ com a tese parmenídica —obviamente uma estratégia para mostrar que há contradição nos versos de Parmênides — ora apresentando a própria contradição que coloca a doutrina parmenídica num nível de impossibilidade lógica-ontológica devido, por exemplo, ao ato de predicar algo ao que se supõe já inexistente[63] «não-ser». Diz, Platão: ‘Estrangeiro: — Compreendes então que não se poderia, legitimamente, nem pronunciar, nem dizer, nem pensar o não-ser em si mesmo; que, ao contrário, ele é impensável, inefável, impronunciável e inexprimível?’ (Sof. 238d). O Estrangeiro pergunta, então, a Teeteto se dos enunciados das frases precedentes ele não percebe em que dificuldade o não-ser coloca mesmo a quem o refuta, de modo que tentar refutá-lo é cair em inevitáveis contradições. Pois, ‘tentar aplicar este ‘é’ não é contradizer as minhas proposições anteriores?’ (Sof. 239a). O que Platão quer dizer é que não é possível tentar definir algo sem o dizer, isto coloca o não-ser como algo existente em linguagem, mas antes em pensamento e para Platão antes ainda já que o pensar possui uma relação essencial com o mundo das Formas. Ainda que seja para negar o não-ser através do impensável se está pensando sobre o fato dele não ser pensável; se está dizendo que o não-ser ‘é’ alguma coisa; impronunciável quando se está pronunciando-o para negar sua impronunciabilidade. Platão demonstra aqui um dos problemas da doutrina de Parmênides. Fica implícito que o não-ser terá que ser uma forma, mas Platão ainda não aponta como pretende solucionar o outro lado da questão: as falsas imagens.

2.2 Nem ser, nem uno, nem múltiplo
Na seqüência, Sof. 238e, Platão apresenta uma contradição radical sobre a questão do uno e da multiplicidade na negação do não-ser,

Estrangeiro: — Não é em mim que é preciso procurar esta maior clareza. Eu que, há pouco e ainda agora, afirmei como princípio que o não-ser não deve participar nem da unidade nem da pluralidade, já ao afirma-lo eu o disse uno; pois disse ‘o não-ser’. Compreendes certamente.
Teeteto: — Sim.
Estrangeiro: — Instantes antes afirmava ainda que ele é impronunciável, inefável e inexprimível. Estás seguindo?
Teeteto: — Sim, como não te seguir?
Estrangeiro: — Tentar aplicar-lhe este ‘é’ não é contradizer as minhas proposições anteriores?
Teeteto: — Provavelmente.’ (Sof. 238 e – 239 a)

O Estrangeiro expõe aqui a contradição de suas próprias palavras de quando estava a ‘concordar’ com Parmênides apresentando o argumento de que não se poderia sequer falar sobre o não-ser, fosse como uno ou múltiplo, porque de qualquer maneira se estaria aplicando a ele algum tipo de predicação o que o torna ‘existente’. É claro que isso é outra crítica de Platão a Parmênides, pois na medida em que se pode dizer algo sobre o não-ser será preciso admitir, de alguma maneira, sua realidade. Na passagem seguinte, Platão coloca na fala do Estrangeiro a confissão de que ele estava até então representando a doutrina parmenídica, mas acrescenta a ela outra confissão: ‘Parmênides de Eléia’ se vê então vencido em sua tese contra o não-ser:

Estrangeiro: — Por que falar de mim por mais tempo? Para mostrar que fui vencido, agora como sempre, nesta argumentação contra o não-ser? Não é, pois, no que eu falo, como te dizia, que devemos procurar as regras de falar corretamente a respeito do não-ser. Mas prossigamos e agora vamos procurá-las em ti. (Sof. 239 b) Teeteto se nega a empreender um enunciado correto a respeito do não-ser, como lhe pede o Estrangeiro, que resolve abandonar a si mesmo e a Teeteto e ‘até que encontrem [os] alguém capaz dessa proeza, digamos que o sofista, da maneira mais astuciosa do mundo, se escondeu num refúgio inextricável’ (Sof. 239c). Nesse ponto, Platão traz de volta os sofistas e a arte do simulacro para falar sobre a semelhança das imagens com o ser e a questão do não-ser. O ‘refúgio’ do qual não se consegue desenredar o sofista é aparentemente a negação do não-ser através da arte do simulacro e, por isso, os sofistas os obrigam a reconhecer que de alguma maneira o não-ser é, porque Platão, como já mencionamos antes, percebe a estratégia de opinião falsa aplicada até mesmo na doutrina parmenídica — a estratégia dos sofistas é falsa e caracteriza assim a própria arte da sofística. Isto faz com que Platão traga na seqüência do diálogo a aporia da imagem: ser e não-ser, pois como os sofistas conseguem fazer ser aquilo que de modo algum é e atribuir não-ser aquilo que é? Será preciso demonstrar a possibilidade do discurso falso para provar que os sofistas concedem ser ao que não tem ser e mostram uma ‘falta’ da verdadeira Forma-Outro, concedendo ao seu próprio pensamento um ‘não-ser irreal’. Isto traz, igualmente, um outro problema subjacente à falsidade: propriamente o status da imagem enquanto falsa imagem. Como explicar a existência de algo falso — e imperfeito — sem supor uma Forma para tanto?

3 A APORIA DA IMAGEM: SER E NÃO-SER

Sabemos que a imagem[64] tem para Platão uma relação direta com o sensível, ‘segundo Teeteto a imagem é «como uma outra coisa parecida com o verdadeiro». Essa outra coisa não é absolutamente verdadeira, mas semelhante.’[65] Mas qual a conexão entre o que estava sendo dito e a aporia da imagem: ser e não-ser? Retomemos uma passagem bem anterior em que Platão já fizera uma forte referência à imagem: as artes ilusionistas (Sof. 233b — 237a) aqui, Platão já expusera que os sofistas conseguiam persuadir, em geral, que somente eles eram os mais sábios de todos, pois se ‘a sua habilidade em discutir não desse algum brilho à sua sabedoria ninguém os procuraria voluntariamente’ (Sof. 233b). O sofista traz ‘uma falsa aparência de ciência universal «dialética», mas não a realidade’ (Sof. 233d). O Estrangeiro dará um exemplo falando sobre ‘todas as coisas’[66] como se o sofista fosse uma espécie de deus capaz de produzir tudo que nasce e cresce trocando por uma quantia bem pequena ao que Teeteto responde dizendo que isso se trata de uma brincadeira. O Estrangeiro diz que sim, inteiramente, e pergunta se ele conhece alguma forma de brincadeira mais sábia e mais graciosa que a mimética. ‘O homem que se julgasse capaz, por uma única arte, de tudo produzir, como sabemos, não fabricaria, afinal senão imitações e homônimos das realidades’ (Sof. 233e — 234c). Como exemplo de imitação[67] (mímesis), o Estrangeiro apresenta uma analogia com a arte de pintar, ora, o quadro ao ser pintado está sendo reproduzido não através da participação do eidos, pois tem por modelo a própria realidade sensível a qual imita. Os sofistas estariam voltados não para as Formas do inteligível mas para a cópia da cópia já existente na realidade sensível, o simulacro da cópia e, portanto, duas vezes mais longe da verdade, mas mostrando-a como se fosse a verdadeira realidade de onde se originam ‘todas as coisas’. Platão se preocupa em fornecer um exemplo que possibilite diferenciar a arte da cópia, através da pintura, e a arte do simulacro, através do discurso dos sofistas. Fica expresso em ambas a produção de falsas e ilusórias imagens do eidos mesmo da coisa a qual se refere. No âmbito do discurso, apresentar todas as coisas dessa maneira é apresentá-las por meio de ficções verbais, por meio de fábulas. O sofista é como um mágico que somente sabe imitar a realidade, ou seja, Platão os trata como sendo ilusionistas das essências do mundo inteligível. O sofista detém a arte que produz ilusões através do discurso falso — eis o seu verdadeiro refúgio. Mais à frente (Sof. 239d — 241b) o Estrangeiro relembra a Teeteto que ambos afirmaram que o sofista possuía a arte do simulacro, refere-se à passagem descrita nas artes miméticas, mas que facilmente ele faria suas fórmulas se voltarem contra eles e quando o chamassem de produtor de imagens ele perguntaria o que, afinal de contas, o Estrangeiro e Teeteto chamam de imagens (Sof. 239d). Teeteto responde que eles devem lembrar ao sofista ‘as imagens das águas e dos espelhos, as imagens pintadas ou gravadas, e todas as demais, da mesma espécie’ (Sof. 240a). Ao que o Estrangeiro lhe perguntará se o sofista não se rirá dos exemplos dados por Teeteto, quando assim lhe responder, ao lhe falar do que se forma nos espelhos ou do que as mãos amoldem. O sofista ‘fingirá ignorar espelhos, águas e a própria vista’ e perguntará, unicamente, o que se deve concluir com tais exemplos. A questão da imagem é, talvez, um problema subjacente ao do discurso falso, pois como explicar que determinadas coisas existem no sensível e não possuam uma origem ontológica através de elementos inteligíveis? Como pode existir algo que Platão insiste em definir como sendo uma imagem — uma falsa imagem — constituindo-se como exemplo maior, no Sofista, a falsidade da arte da sofística? Não se pode esquecer que para os gregos dizer alguma coisa, o logos, era dizer o «ser» (tó ón), isto, a princípio, colocaria qualquer coisa enunciada como existente em linguagem, mas antes em pensamento e para Platão antes ainda, já que o pensar possui uma relação essencial com o mundo das Formas. Então, como admitir a existência de algo que «é» no pensamento e «não é» um eidos? O problema que perpassa todo o Sofista parece ser sempre o mesmo: Platão busca um modo de solucionar problemas sem cair em contradições com a sua «teoria das idéias». Por isso, na seqüência, o Estrangeiro perguntará a Teeteto: ‘o que há de comum entre todos esses objetos que tu — Teeteto — dizes serem múltiplos mas que honras por um único nome, que é o nome de imagem, e que entendes como uma unidade sobre todos eles. Fala agora, e sem permitir-lhe vantagem alguma, repele o adversário. Ao que Teeteto responderá:

Teeteto: — Que outra definição daríamos à imagem, Estrangeiro, se não a de um segundo objeto igual, copiado do verdadeiro?
Estrangeiro: — Teu ‘segundo objeto igual’ significa um objeto verdadeiro, ou, então, que queres dizer com esse ‘igual’?
Teeteto: — De forma alguma um verdadeiro, certamente, mas um que com ele se pareça.
Estrangeiro: — Mas, por verdadeiro, tu entendes ‘um ser real’?
Teeteto: — Certamente.
Estrangeiro: — Então? Por não-verdadeiro tu entendes o contrário do verdadeiro? [...] O que parece é, pois, para ti, um não-ser irreal, pois o afirmas não-verdadeiro.
Teeteto: — Entretanto há algum ser.
Estrangeiro: — Em todo caso, não um ser verdadeiro, é o que dizes.
Teeteto: — Certamente não; ainda que ser por semelhança seja real.
Estrangeiro: — Assim, pois, o que chamamos semelhança é realmente um não-ser irreal?
[68] (Sof. 240a —240b)
Platão busca aqui uma definição mais precisa de ‘imagem’ para poder distingui-la do ‘real’ das Formas e consequentemente do ‘irreal’ que provém de tais imagens. Cornford pergunta ‘como pode haver imagens visíveis de realidades invisíveis?’[69] Platão coloca de fato que existem imagens «cópias» visíveis, contudo a expressão ‘realidades invisíveis’ referem-se às Formas, assim, formulamos a questão de Cornford de outra maneira: como é possível que o ‘irreal’ que aparece como imagem não possua a presença do eidos e contudo seja algo que parece ter existência no sensível? Essa passagem é extremamente importante porque Platão destaca o ‘real’ — das Formas e sua presença no sensível — e o ‘irreal’ — o entrelaçamento falso das Formas que aparece com uma aparência semelhante, mas não ‘real’, por isso Teeteto diz que ‘há algum ser’, contudo não um ser verdadeiro. Isso implica que ser por semelhança seja real na medida em que existe uma origem ontológica: o ‘real’ representa a própria existência e realidade das Formas no inteligível, mas torna-se ‘irreal’ representando a 'não-presença' de sua verdadeira realidade proveniente da estrutura ontológica. Podemos dizer que aqui se apresenta um dos significados de não-ser: a ausência da presença real do eidos acaba sendo preenchida por ‘imagens’ — por aquilo que as coisas não são realmente — fornecendo uma definição de não-ser como irreal, antecedendo a verdadeira definição de não-ser-Forma como ‘Outro’, no que se refere às argumentações do diálogo. Platão parece ir eliminando todas as possibilidades de se pensar no não-ser não somente como o reformula em Parmênides «ser absoluto», mas também como compreende o não-ser em relação à arte do simulacro dos sofistas: um não-ser falso, portanto, irreal. É possível entender o irreal em função mesmo do não-ser quando Platão diz: ‘Assim, pois, o que chamamos semelhança é realmente um não-ser irreal?’ (Sof. 240b). O semelhante se ‘parece’ com o real porque ‘vem’ das Formas, mas ao ser derivado para um não-ser irreal — devido a má apreensão do entrelaçamento das Formas — acaba por se mostrar como algo que traz em si uma semelhança do ‘real’, contudo tornado irreal. Dessa semelhança é que derivam seus discursos ‘como se fossem’ verdadeiros e assim Platão consegue explicar a existência de falsas imagens sem uma atribuição inteligível e, portanto, sem cair em contradição 'supondo o falso como real', talvez como os sofistas desejassem que fosse justificado já que havia uma conexão muito forte e estreita do não-ser com o falso, o que 'obrigaria' Platão, ao estabelecer o não-ser como algo existente inteligivelmente, como a própria falsidade. Veremos, no decorrer do diálogo, que não será o caso de Platão contradizer a perfeição das Formas, ao contrário, resolve vários problemas sem cair na possível 'armadilha' dos sofistas. Podemos relacionar o parágrafo acima através da passagem do Sofista 260d, na qual os sofistas negam o não-ser: ‘Ora, como dissemos, é exatamente neste abrigo que o sofista se refugiou, e, uma vez ali, negou obstinadamente a própria existência da falsidade’. Poderíamos dizer que possuem dois refúgios: a negação do não-ser que protege a falsidade e a arte do simulacro com a qual a exercem. Essa relação se torna importante porque a negação do não-ser permite aos sofistas negarem que pudessem fazer do não-ser uma apreensão falsa, mas Platão mostra aqui os sofistas exercendo mais uma vez a arte de produzir imagens talvez no seu ponto mais extremo e elevado: produzir aquilo que não é ‘real’ e chegar assim a produzir uma forma de não-ser irreal — outro refúgio dos sofistas. O Estrangeiro fará então referência a um ‘entrecruzamento’, o sofista os obrigam a reconhecerem: de alguma forma, o não-ser é «irreal» inicialmente. Utilizando uma analogia metafórica podemos dizer que o pensar do sofista em vez de estar voltado para as Formas puras, de onde deveria tentar apreender o que as coisas são verdadeiramente, está voltado de maneira ‘lateral’, em vez de um ‘olhar’ que ascende verticalmente, possui um olhar de simulacro, que se volta ‘lateralmente’ para o que se encontra no sensível, como se tomasse emprestado os pensamentos de outros distanciando-se do que sua alma contemplou um dia — o sofista negaria tal contemplação das Formas para se fixar no imediato e no que pode pegar emprestado, o que exclui o ascender de seu próprio pensamento, não quer isso, mas apenas ser para si mesmo a medida de todas as coisas através de seu pensamento imerso num relativismo que se levado às últimas conseqüências o levaria também a negar a si próprio: se é a medida de si mesmo, como explicaria a origem desse ‘si mesmo’ e porque razão pereceria sem que pudesse escolher? Platão admitirá que o sofista pode ser a medida de todas as coisas mas tão somente no âmbito do discurso — falso.
A partir de 240d o Estrangeiro caracterizará a arte dos sofistas: sua obra é um embuste, sua arte ilusionista, e ‘nossa alma se forma de opiniões falsas[70], em conseqüência da sua arte?’ (Sof. 240d)

Estrangeiro : — A opinião falsa seria, agora, a que concebe o contrário daquilo que é, ou o quê?
Teeteto: — O contrário do que é.
Estrangeiro: — Ao que crês, então são os não-seres, o que a opinião falsa concebe.

A opinião falsa concebe aquilo que é como não sendo, mas concebe também aquilo que não é como sendo e ambas constituem a falsidade. Aqui, Platão mostra que uma espécie de não-ser reside quando se concebe aquilo que não é como sendo de algum modo. E. Luft explica a relação do não-ser com a falsidade dos sofistas da seguinte maneira: ‘dizer o não-ser daquilo que é, confundir as Formas entre si, fazer mau uso dos opostos é propriamente raciocínio falso’[71]. Por outro lado, dizer o ser daquilo que não-é seria não fazer uso da dialética e sim de falsas imagens. Mas de onde vem essas coisas que não-são? Ou que são simples imagens? Se vêm do não-ser-Forma retorna ao mesmo problema: todo ‘outro’ seria verdadeiro desde que o relacionemos como sendo um eidos, uma forma pura e de onde provém a «essência». Em outras palavras, os sofistas poderiam contra-argumentar a Platão que se existe uma Forma que significa o Outro, logo seus discursos são verdadeiros porque exprimem ‘outro’ que não o discurso do autêntico dialético ou filósofo. Pressupomos que Platão ao escrever esta passagem do diálogo pensou nesta hipótese, já que em 239d — 241b ele diz que ‘facilmente ele [o sofista] faria suas fórmulas [do Estrangeiro e de Teeteto] se voltarem contra eles’. Portanto, os sofistas poderiam dizer que seu discurso sendo ‘outro’ também é verdadeiro, e mais, sendo justificado através de um pensador que estava tentando demonstrar o contrário, isto é, a falsidade da arte da sofística onde qualquer discurso, dado sua multiplicidade, implicaria, segundo a contra-argumentação hipotética, possivelmente na Forma Outro. Contudo, não é o não-ser — parte que constitui o Outro — que é o falso, mas o ‘entrelaçamento’[72] que não pode haver entre ser e não-ser ‘produz’ — o que não é de modo algum — algo como sendo: ilusão, falsidade, erro. Como então fazer uma apreensão verdadeira do entrelaçamento para que não derive em forma de falsidade? Como apreender o eidos real do não-ser? Mais à frente Platão falará sobre a ciência suprema: a dialética, pressupomos que o entrelaçamento das idéias, que refletem a verdade das Formas, só pode ser dado pelo exercício dialético, este implica em um fundamento para o filósofo: o desejo pela sabedoria é pressuposto para o exercício da dialética, coisa que, evidentemente, os sofistas desprezam, daí a derivação de seu modo de pensar em ilusões, produzindo uma falsa ciência: dialética degenerada em erística. Além disso, quando o Estrangeiro diz: 'Ao que crês, então são os não-seres, o que a opinião falsa concebe', podemos ver uma introdução aos «não-seres» às falsas imagens e que será retomado após Platão estabelecer todos os gêneros supremos e relacioná-los, os não-seres, com o discurso falso. Os «não-seres» estão na citação eleata onde mencionamos o ponto de concordância de Platão com Parmênides. Mas dificuldades que os sofistas apresentam são inúmeras, o Estrangeiro fará o célebre pedido a Teeteto:

Estrangeiro: — Que, para defender-nos, teremos de necessariamente discutir a tese de nosso pai Parmênides e demonstrar, pela força de nossos argumentos que, em certo sentido, o não-ser é; e que, por sua vez, o ser, de certa forma, não é.
Teeteto: — Evidentemente, esse é o ponto que teremos de debater em nossa discussão. (Sof. 241d)

4 O SER E O NÃO-SER E O ELEATISMO

A partir dessa passagem (Sof. 242a) Platão fará com que a personagem do Estrangeiro de Eléia abandone a representação que vinha fazendo do próprio Parmênides para dar lugar ao pensamento de Platão na íntegra, sem alternância estratégica da doutrina parmenídica com o pensamento que Platão pretende aos poucos demonstrar. Desse ponto em diante, o Estrangeiro assumirá o pensamento de Platão para estabelecer os gêneros supremos. O pressuposto de que os sofistas deturpam a Parmênides permite a Platão tomar consciência, os sofistas fazem da tese parmenídea uma outra tese: de absoluta vira relativista, da verdade passa para o plano de ilusória verdade, do erro e da falsidade, do não-ser passam para tudo é verdadeiro. Platão insere a opinião falsa na maneira como os sofistas tratam o não-ser parmenídico para refutar aos sofistas, utilizando-se de um círculo, isto é, assim como os sofistas se utilizaram do ser absoluto de Parmênides para sustentar seu relativismo através, principalmente, da segunda afirmação: ‘o não-ser não é’, como já explicamos anteriormente, Platão implicitamente usando a tese dos sofistas, o faz ‘como se fosse’ via opinião falsa. Vê, no principal problema do poema de Parmênides —absoluto — uma derivação sofistica de falsidade e pode, assim, remetê-la a um raciocínio que não é verdadeiro. Ora, se os sofistas conseguiam defender o relativismo através de tal argumentação — o ser uno transposto para o discurso — logo esta não poderia ser uma não-opinião falsa, vista de dentro do pensamento de Platão, direcionada ao monismo eleático e ligada à sofística, acaba por construir uma seqüência de argumentações na qual Platão encontrará os elementos para construir uma estrutura ontológica com Formas relativas. Se Parmênides possibilitou aos sofistas a defesa de tanto relativismo, agora os sofistas possibilitam a Platão um problema que o ajudará a estruturar sua ontologia. Há, portanto, antes da explicação da opinião falsa atribuída aos sofistas e sua relação com a estrutura ontológica, um ponto que antecede ao próprio ‘parricídio’ e do qual, talvez, Platão o tenha percebido claramente: os sofistas já haviam realizado o parricídio contra Parmênides ao sustentarem suas teses sobre ele, já haviam transformado a afirmação ‘o ser é e o não-ser não é’, em uma demonstração de opinião falsa, ao que Platão, apoiado no "mesmo raciocínio" fará da opinião falsa o ponto de partida para a reformulação da tese de Parmênides, sem, contudo, contribuir para que viesse a imergir ainda mais na produção de ‘imagens falsas.’ Tudo isso assume conseqüências diferenciadas dependendo do ponto de vista. Platão percebe que os sofistas utilizam a via dos mortais, doxa, e, portanto, do erro e da falsidade, mas se fazem passar por sábios ao afirmarem a via da verdade: o ser é; já os sofistas se apoiam na afirmação: o não-ser não é, da qual derivam que tudo que é dito é existente, logo, verdadeiro. Platão: se o não-ser não é decorre a impossibilidade da falsidade, os sofistas deturpam a doutrina parmenídica porque sustentam suas teses sobre o ser absoluto. Platão toma consciência que os sofistas ‘vivem’ na via da doxa, percebem a existência do discurso falso e não o evitam, seguem pela via da doxa, usam a do não-ser para poderem dizer que seu discurso é verdadeiro e, portanto, são ‘sábios’ que se utilizam da verdade: o ser é e derivam para ser e pensar é o mesmo — decorre que os sofistas partem eles próprios do caminho tido como do erro e portanto da falsidade, mas como ilusionistas da verdade usam a máscara da verdade sustentada num jogo de argumentação que cobre as vias apresentadas por Parmênides como sendo não aquilo que exatamente apresentam em seus discursos, o falso tido como verdadeiro. Para os sofistas ‘pensar e ser é o mesmo’ a partir da falsidade e da arte do simulacro. Já para Platão existe sempre uma certa existência ontológica e, posteriormente, sensível e, dessa maneira, percebe o jogo sofista enquadrado, antes de qualquer coisa, na arte do simulacro a partir do parricídio dos sofistas contra Parmênides. O filósofo sabe que é preciso reformular a tese parmenídica em função de estabelecer movimento que não existe no absoluto parmenídico, mas para ele isto não implica fazer da doutrina parmenídica aquilo que ela não é[73] — propriamente atividade exercida pelos sofistas. Antes pelo contrário, Platão avisa que irá retomar a doutrina de Parmênides, apontar suas contradições e só posteriormente irá reformulá-la — ele trata Parmênides com respeito e admiração em todo esse processo de tornar o ser absoluto uma das Formas relativas — Platão não o deturpa, ele reformula e deixa isso expresso no diálogo. Fica claro quando o Estrangeiro faz o pedido na clássica passagem em que os especialistas sustentam o parricídio de Platão contra Parmênides: ‘Estrangeiro: — Far-te-ei, pois, um pedido ainda mais veemente. [...] De não me tomares por um parricida’(Sof. 241d). Além disso, Platão não nega uma realidade independente do sensível, ele quer sim encontrar maneiras de estruturar a ontologia, então, como se poderia dizer que ele comete o parricídio contra Parmênides? O’Brien pergunta pela culpa de Platão, analisando que os comentadores estão de acordo em procurar no Sofista as refutações que indicam o parricídio, mas que eles não entram nunca num acordo sobre a passagem precisa onde ele se situa no diálogo: ‘Platon a-t-il plaidé coupable?’[74] Segundo a nossa interpretação, toda a tese de Parmênides nega o movimento que precisa haver no pensamento e na linguagem, na vida, toda a tese sofística inverte a de Parmênides para se auto-fundamentar afirmando ser parmenídica quando, na verdade, é falsa. Todo o esforço de Platão será para mostrar que tanto Parmênides precisa ser retomado como também para mostrar a interpretação equivocada realizada pelos sofistas, o que não poderia ser diferente, dado o talento para o exercício da arte do simulacro de onde provém todas essas ilusórias inversões. Recordamos aqui as palavras de Lima Vaz: ‘Platão mostrará que o não-ser sob certo respeito é, e o ser por sua vez não é, demonstração que não é um parricídio senão em aparência, pois visa salvar a verdade essencial da posição eleática, a primazia da inteligência e do inteligível sobre a multiplicidade confusa do sensível’[75]. Com toda essa inversão feita pelos sofistas da doutrina de Parmênides, Platão precisará mostrar que a via do não-ser, embora não deva ser tomada, existe já para o próprio Parmênides e também para os sofistas que fingem ignorá-la e criam uma via falsa da verdade por meio do ser absoluto num plano em que não poderia ser absoluto pois negaria exatamente aquilo pelo qual a utilizam: seu próprio discurso. Por isso, ‘o Estrangeiro resolve deixar o plano do discurso, em que o sofista parece invencível, para atacar o fundamento da posição sofística: o ser-uno de Parmênides’[76]. Platão realizará uma revisão das escolas filosóficas anteriores a ele para demonstrar que nenhuma delas, bem como Parmênides, conseguiram dar uma resposta satisfatória ao problema do não-ser indicando que a refutação na verdade se dá em direção às escolas filosóficas e a reformulação em direção à doutrina parmenídea. Marques diz querer ‘resgatar a reverência com que o velho eleata é abordado, no momento mesmo em que é aparentemente refutado’, pois ‘no diálogo platônico Sofista, a discussão da questão do erro implica que de alguma forma o não-ser seja’[77]. E ainda relembra bem a clássica passagem em que o Estrangeiro avisa que irá ‘refutar’ a tese (logos) de Parmênides:

Estrangeiro: — Nesse caso posso contar com tua indulgência, e como acabas de dizer, tu te contentarás com o pouco que possamos ganhar, não importa em que, sobre uma tese de tal vigor.
Teeteto: — Como poderias duvidá-lo?
Estrangeiro: — Far-te-ei, pois um pedido ainda mais veemente.
Teeteto: — Qual?
Estrangeiro: — De não me tomares por um parricida.
Teeteto: — Que queres dizer?
Estrangeiro: — Que, para defender-nos, teremos que necessariamente discutir a tese de nosso pai Parmênides e demonstrar, pela força de nossos argumentos que, em certo sentido, o não-ser é, e que por sua vez, o ser, de certa forma, não é.’
[...]
Estrangeiro: — Nesse caso, pela terceira vez quero pedir-te um pequeno favor.
Teeteto: — Dizes o que é.
Estrangeiro: — Declarei há pouco, creio, e de uma maneira expressa, que uma tal contestação sempre ultrapassou as minhas forças e, certamente, ainda ultrapassa.
Teeteto: — Sim, declaraste.
Estrangeiro: — Temo, depois do que declarei, que tomes por um insensato, vendo-me passar à vontade, de um a outro extremo. Ora, na verdade, é somente para teu agrado que nos decidimos a contestar a tese, no caso de tal contestação ser possível.
Teeteto: — Confia que, pelo menos eu nunca acharei que cometes desmedida se te lançares nessas contestação e demonstração. Se é só isso o que te preocupa, prossegue sem nada temer.
Estrangeiro: — Então prossigamos. Por onde começaremos um argumentação tão perigosa. (Sof. 241 c — 242 b)

A argumentação perigosa a qual o Estrangeiro se refere se dará em direção a revisão das escolas filosóficas precedentes: materialistas e idealistas — e à reformulação do ser absoluto parmenídico. No entanto, ‘Platão não repetirá a fórmula do não-ser parmenídico: o não-ser é impensável e inexprimível, pois as mesmas fórmulas que negam o não-ser não o podem negar sem o pensar e exprimir’[78]. Assim, para sustentar que o sofista diz o falso, Platão não pode se manter somente nas definições e afirmar a possibilidade do falso nas coisas e nas palavras (logos)[79] será preciso provar o não-ser como eidos.

5 O SER E O NÃO-SER E AS ESCOLAS FILOSÓFICAS
A partir da passagem 242 b até 249 d, Platão dará um rumo ao Sofista através de uma revisão das escolas filosóficas do período anterior a Sócrates. Cornford observa aqui a questão do perfeitamente real e o que significa ‘real’ para os dois grupos: os filósofos físicos, que vêem nas coisas materiais do mundo as coisas reais e, portanto, existentes, e Parmênides, o único a negar o mundo fenomênico e admitir somente uma coisa real[80]. Diès, interpreta dizendo que Platão aborda as cosmogonias dos antigos filósofos através da crítica ao unitarismo intransigente dos eleatas e a multiplicidade em Heráclito e Empédocles. Além disso, Platão se dirigiria também aos Filhos da Terra, os quais sustentam o material, e aos Amigos das Formas, os quais sustentam o imaterial ou incorpóreo como o ‘real’ — um longo quadro da história da filosofia[81]. O Estrangeiro colocará as duas[82] posições sobre o ser: uma doutrina que define o corpo e a existência como idênticos e que pretendem à força tudo reduzir ao corpo, outros que atribuem ao ser algo sem corpo, estes se esforçam por demonstrar que certas formas inteligíveis e incorpóreas são o ser verdadeiro.

5.1 Os Filhos da Terra
O diálogo seguirá em torno da primeira posição na tentativa de explicá-la tomando como exemplo o corpo e a alma. Aqui se encontra presente a questão do devir e do ser como sendo distintos um do outro. Pelo corpo, diz o Estrangeiro, é que estamos em relação com o devir; mas pela alma, por meio do pensamento, é que estamos em comunhão com o ser verdadeiro, o qual dizeis vós, é sempre idêntico em si mesmo e imutável; enquanto que o devir varia a cada instante. O Estrangeiro fala sobre os Filhos da Terra para os quais somente o tangível é real e os obriga a admitir que existem coisas que sem ser tangíveis manifestam sua realidade pelo seu poder de afetar ou de ser afetadas por algo: almas, justiça, injustiça, sabedoria, loucura, bondade, maldade (Sof. 246e — 248a). A afirmação do corpóreo ou tangível como real excluiria aquilo que Platão denominou de formas de valores abstratas, assim os Filhos da Terra entrariam em contradição ao afirmar somente o corpóreo pois estariam negando a existência de coisas que afetam a alma ou o ser.

5.2 Os Amigos das Formas
Quanto aos Amigos das Formas, Ross observa, segundo os especialistas, quatro hipóteses: 1) seriam os megáricos (escola pouco conhecida), 2) pitagóricos (na Itália só se sabe sobre Proclo), 3) platônicos da primeira fase da doutrina platônica com elementos pitagóricos e eleáticos), 4) Platão estaria se referindo a uma fase anterior a sua. Taylor, a favor da segunda hipótese. Para Ritter[83], Platão estaria fazendo uma autocrítica, pois a teoria descrita no Sofista é exatamente igual ao do Fédon e da República, pois para este especialista ‘Platão nunca aceitou como definitiva a doutrina da imortalidade da alma. No Sofista não refuta a imortalidade da alma, dá um tratamento da realidade que não inclui a vida e a alma, mas situa a alma entre o verdadeiro e o real.’ Para Ross, o mais provável é a quarta hipótese: seria uma autocrítica de Platão a si mesmo[84]. Pensamos que é possível pensar nas quatro hipóteses sem que haja necessariamente exclusão total de algumas delas, pois se considerarmos que Platão teve visíveis influências dos megáricos e pitagóricos e que a terceira e quarta hipóteses incluem a ele mesmo, pode-se ver em todas as hipóteses elementos de crítica ou de autocrítica de todas as escolas sobre as quais Platão, se não teve influência direta, ao menos conheceu. Em todos os casos, os Amigos das Formas concedem realidade somente às Formas, relegando tudo o mais ao reino do devir. A questão principal das escolas filosóficas é: aceitar alguma dessas doutrinas significa aceitar algo extremo: ou há a exclusão da doutrina da imobilidade — Parmênides, por exemplo — ou há a exclusão da doutrina do devir ou de que o ser move-se em todos os sentidos. Essa revisão tem um grande objetivo: mostrar que o real de onde provém o ser não pode ser um monismo radical como em Parmênides através do ser absoluto, pois negaria o devir até mesmo da alma que implica em vida, nem poderia ser um devir que negasse alguma espécie de ‘repouso’ ao ser, pois a essência de cada eidos não se manteria se fosse só devir. Platão, portanto, não refuta a Parmênides, mas aponta os problemas em todas as correntes de pensamentos das escolas filosóficas precedentes porque todas pecam pelos extremos em sua radicalidade de negar totalmente ou o devir ou o monismo parmenídico[85]. Por esta razão as Formas precisam ser relativas e deve existir algo entre elas que permita a permanência de sua natureza mesma, mas que possibilite igualmente um ‘movimento’ que se assemelhe ao movimento e à multiplicidade do sensível — mesmo do pensamento e do discurso. Esta parte do diálogo, tem portanto, a intenção de mostrar que tanto o repouso é necessário como o movimento. Na seqüência do diálogo Platão trará como discussão o Repouso e o Movimento de onde derivará para as Formas do Mesmo e do Outro_ aqui estabelecerá o não-ser como sendo as partes que constituem o Outro.

6 O SER E O NÃO-SER E OS GÊNEROS SUPREMOS
Através de um raciocínio relacional e lógico o Estrangeiro mostrará a Teeteto que existem inicialmente três Formas supremas: o Repouso, o Movimento e o Ser, todos são colocados como sendo o Mesmo em relação a si próprios e Outros em relação a cada um dos outros dois sem, contudo, virem a ser a forma do Mesmo e a forma do Outro. Nessa passagem Platão retorna a falar sobre a participação entre as Formas dizendo que algumas possuem a capacidade da mútua associação e outras não (Sof. 251). O Estrangeiro colocará três hipóteses sendo que somente a última é aceita: ‘ou tudo se une ou nada se une, ou então, há algo que se presta e algo que não se presta à mútua associação (Sof. 252). Através de uma analogia com as letras — em que algumas se unem e outras não — diz, ainda, que para isso se faz necessário uma arte: a gramática. Indica, em seguida, o ponto central que começara com a analogia das letras: é necessário, igualmente, uma ciência que ‘nos oriente através do discurso se quisermos apontar com exatidão quais os gêneros que são mutuamente concordes e quais os outros que não podem suportar-se (Sof. 253c). Esta ciência suprema é a dialética. Principia aqui a diferença entre o filósofo e o sofista: pois ‘aquele que a exerce [a dialética] possui o dom dialético e filosofa em toda sua pureza e justiça’ (Sof. 253e) — Platão refere-se, é claro, a uma definição do filósofo, é este quem «contempla» as Formas através da suprema ciência; o sofista, ao contrário, continua a se refugiar na obscuridade do não-ser (Sof. 254 b).

6.1 O Repouso e o Movimento
O Estrangeiro faz referência que não estenderão os argumentos a todas as Formas: ‘não o estenderemos aliás, à universalidade das Formas, temendo confundirmo-nos nessa multidão. Consideraremos, entretanto, algumas destas, que nos parecem as mais importantes’ (Sof. 254c). Aqui, Platão diz claramente que irá estabelecer os gêneros supremos apenas das Formas mais importantes, fica implícito uma hierarquia de Formas que se desdobrariam através dos gêneros maiores, mas Platão deixa claro que não irão tratar sobre isto. Dentre as Formas escolhidas o Estrangeiro diz que ‘os mais importantes desses gêneros são precisamente aqueles que acabaram de examinar: o próprio Ser, o Repouso e o Movimento’ (Sof. 254d) e chega a seguinte conclusão: ‘assim, cada um é outro com relação aos dois que restam, e o mesmo que ele próprio’ (Sof. 254e). Ao utilizar a argumentação a partir do Mesmo e do Outro para estabelecer a realidade e a ligação entre os três primeiros gêneros supremos Platão os explica através de uma relação Mesmo-Outro, estas serão as outras duas Formas que comporão a ontologia no Sofista.
Podemos resumir da seguinte maneira:
1) o Movimento é outro que não o Repouso, logo ele não é Repouso, entretanto ele ‘é’ pelo fato de participar do Ser-Repouso.
2) o Movimento é outro que não o Mesmo, então ele não é o ‘Mesmo’, entretanto é o mesmo, pois como conviemos tudo participava do mesmo. O Movimento é o Mesmo (porque participa do Mesmo) e não o mesmo (porque participa do Outro) esta relação faz com que o Movimento seja ‘separado’ do Mesmo e o torna não-mesmo, e sim outro (não-o-mesmo) (Sof. 256b)

6.2 O Mesmo e o Outro
O Movimento é outro que não o Outro, outro que não o Ser, outro que não o Mesmo e outro que não o Repouso. Mas não é o Outro enquanto Forma-Outro, constitui-se ‘outro’ em relação às outras Formas, então ele é (ele mesmo, sem ser o Mesmo) e não é (os outros gêneros) pois apenas participa deles, logo a participação entre as Formas se dará num nível relacional-ontológico em que isso só é possível por causa de idéia de Outro e de Movimento, que possibilitam a diferença, e por causa da Forma Mesmo e Repouso, que possibilitam a ‘identidade’ de cada um dos elementos do inteligível; estas últimas mantêm a ‘essência’ de cada Forma para dizer que a Forma é o que ela é, essa identidade possibilita que na participação, em relação às outras Formas, a ‘essência’ de cada gênero participe através de sua identidade pura. Quando a participação da essência se ‘desloca’ da Forma, por exemplo, do Repouso, ela ‘sai’, com seu movimento próprio, quando estende sua presença à outra Forma, por exemplo, do Outro, efetivando a participação, ela é, então, presença na Forma-Outro como sendo a mesma (ela própria) e não a mesma (pois não é a Forma em si do Repouso que penetra no Outro, mas somente uma parte — participação — portanto, através da participação, que não é a Forma pura em si, ‘concede’ sua presença e, por isso, somente participa entre as outras Formas — caso contrário perderia sua «identidade» que lhe é própria.

Todas as Formas são importantes nessa relação, pois o Mesmo possibilita a mesmidade ou identidade de cada Forma, o Movimento possibilita que a participação se efetive, o Repouso possibilita que a Forma continue sendo o que ela é quando recebe a presença de outra Forma, e é através do Outro que a multiplicidade desses elementos que compõem a ontologia se estruturam a partir do Sofista. O Outro refere-se à multiplicidade e embora no Sofista Platão fale do discurso falso, colocando no diálogo sobretudo uma questão decorrente da própria multiplicidade do sensível, o que Platão faz é desenvolvido primeiramente num plano ontológico do qual será possível derivar: se há multiplicidade entre as Formas, pois agora não falamos somente de um «ser absoluto», mas de Formas relativas, então a multiplicidade do sensível poderá ser explicada através do mesmo raciocínio.

6.3 O não-ser como parte constitutiva do Outro
Finalmente, a partir de 257b Platão fornece definições[86] de não-ser[87]:
Primeira definição de não-ser: ‘Quando falamos no não-ser isso não significa, ao que parece, qualquer coisa contrária ao ser, mas apenas outra coisa qualquer que não o ser’ (Sof. 257b).
Segunda definição de não-ser: ‘Não podemos, pois, admitir que a negação signifique contrariedade, mas apenas admitiremos nela alguma coisa de diferente. Eis o que significa o “não” que colocamos como prefixo dos nomes que seguem a negação, ou ainda das coisas designadas por esses nomes’ (Sof. 257c).

A seguir Platão se utiliza de outra analogia para falar sobre o não-ser, a da ciência que é una, mas possui partes que dela se separa. Nos permitimos aqui transpor a analogia descrita no diálogo diretamente para o não-ser da seguinte maneira:
1) A natureza do Outro é una.
2) Possui partes[88] que dele se separam.
3) Estas partes possuem um nome que lhe é próprio devido a pluralidade de coisas existentes.
4) Estas partes constituem a natureza do Outro.
5) A natureza do Outro se inclui entre os seres; e se ela é, é necessário considerar suas partes como seres pela mesma razão que o que quer que seja.
Desse raciocínio das «partes» do Outro que constituem, por excelência, o não-ser, Platão retirará a terceira definição: ‘quando uma parte da natureza do outro e uma parte da natureza do ser se opõem mutuamente, esta oposição não é, se assim podemos dizer, menos ser que o próprio ser; pois não é o contrário do ser o que ela exprime; e sim, simplesmente, algo dele diferente’(Sof. 258b) — refere-se ao “não-ser” precisamente.

Concluindo essa passagem do diálogo com uma quarta definição de não-ser: ‘o não-ser é, a título estável, possuidor de uma natureza que lhe é própria’ [...] unidade integrante no número que constitui a multidão das formas’ (Sof. 258c). O Estrangeiro retorna a Parmênides dizendo que o desafio feito a Parmênides os levaram além dos limites interditados pelo eleata para, então, fornecer outra definição de não-ser:

Quinta definição de não-ser: ‘Ora, não nos contentamos apenas em demonstrar que os não-seres são, mas fizemos ver em que consiste a forma do não-ser[89]. Uma vez demonstrado, com efeito, que há uma natureza do outro, e que ela se divide em todos os seres em suas relações mútuas, afirmamos, audaciosamente, que cada parte do outro que se opõe ao ser constitui realmente o não-ser’ (Sof. 258e)

Sexta definição de não-ser: Há uma associação mútua dos seres. O ser e o outro penetram através de todos e se penetram mutuamente. Assim, o outro, participando do ser, é, pelo fato dessa participação, sem, entretanto, ser aquilo de que participa, mas o outro, e por ser outro que não o ser é, por manifesta necessidade, não-ser. O ser, por sua vez, participando do outro, será pois, outro que não o resto dos gêneros. Sendo outro que não eles todos, não é, pois nenhum deles tomado à parte, nem a totalidade dos outros, mas somente ele mesmo; de sorte que o ser, incontestavelmente, milhares e milhares de vezes não é, e os outros, seja individualmente, seja em sua totalidade, são sob múltiplas relações, e, sob múltiplas formas não são (Sof. 259b).

A partir daqui Platão faz uma relação do que seja o discurso falso dizendo que ‘mostrar que o mesmo é outro, e o outro, o mesmo, sentindo prazer em apresentar perpetuamente essas oposições nos argumentos, isso não constitui a verdadeira crítica: é apenas, evidentemente, o fruto prematuro de um primeiro contato com o real.’ (Sof. 259d). Trata-se dos sofistas que estabelecem ligações que não poderiam ter se associado ou que não estão de «acordo» com o real das Formas, acabam por estabelecer associações desprovidas, portanto, da verdade, principalmente por não fazerem uso da ciência suprema, da dialética. Podemos expor o que foi dito até agora sobre o não-ser da seguinte maneira: 1) o não-ser sob certo aspecto é — é outro enquanto forma, eidos que justifica a multiplicidade de ‘todas as coisas’, e o discurso se torna verdadeiro se o entrelaçamento das Formas supremas for apreendido pela dialética platônica. 2) o não-ser como irreal ‘é’, desde que é também arte do simulacro, mas não significa existência real no mundo das Formas e sim um entrelaçamento que produz falsas imagens. 3) o ser por sua vez não é — não é o não-ser enquanto outro — também: o ser do não-ser não é um ser irreal como o não-ser irreal dos sofistas. 4) o ser não é aquilo que os sofistas atribuem ao que não tem ser, como o dizer falso que se dá pelo ‘estranho’ entrelaçamento do eidos do ser e do não-ser. Entrelaçamento este que não faz uso da dialética e por isso se torna distante do inteligível.

6.4 Os «não-seres» de Platão e dos sofistas
Para falarmos sobre isso tomaremos dois aspectos: 1) Platão cita duas vezes a mesma passagem de Parmênides: ‘Jamais obrigarás os não-seres a ser; Antes afasta teu pensamento desse caminho de investigação.’(Sof. 237a). 2) Platão utiliza dois[90] termos diferentes para dizer o «outro»: allós e heteron. Esta passagem é citada primeiramente na questão do erro e do não-ser em 237a, levando à condição de possibilidade do discurso falso, em seguida é citada novamente em 258d, após já terem sido estabelecidas as Formas, entre elas a do Outro. Se tomarmos a segunda vez em que Platão cita esta passagem e a de 260c, quando o Estrangeiro diz: ‘o fato de serem não-seres o que se enuncia ou se representa, eis o que constitui a falsidade, quer no pensamento, quer no discurso’ (Sof. 260c) e considerarmos, Platão fala em: enunciar ou representar, isto é, os não-seres só são possíveis através do pensamento — ‘pensamento e discurso são, pois, a mesma coisa’ (Sof. 263e) — o filósofo já não está aqui falando sobre as Formas em si mesmas, mas sobre sua participação no pensar e na alma derivada em discurso. Por isso, podemos inferir, os não-seres não têm o mesmo significado de não-ser. Do contrário, teríamos que aceitar que ele é a própria falsidade, o que constituiria o falso como um eidos. Não acreditamos que Platão tenha abandonado a perfeição das Formas, admitir o falso como real, apoiando os sofistas ao dizer que há uma Forma para o seu discurso falso. Por este raciocínio e voltando a 237a, onde ele cita inicialmente os não-seres, podemos, talvez, interpretar como sendo sim condição de possibilidade, mas muito mais que ‘tomar o mesmo pelo outro e o outro pelo mesmo’ — o que constitui a falsidade — os não-seres seriam as próprias imagens criadas pelos sofistas através da apreensão equivocada das essências. Só podem tomar o mesmo pelo outro e o outro pelo mesmo porque pretendem enunciar os não-seres a partir não do Outro, mas daquilo que eles próprios fabricam na condição de ilusionistas da verdade. Os não-seres são o pseudo, o falso, o criar todas as coisas, enquanto o não-ser é uma parte constituinte da natureza de uma das cinco Formas supremas, o Outro, heteron. Allós[91] se refere, portanto, aos «não-seres» do sofista, enquanto, heteron, à Forma em si mesma. Logo, em 237a, Platão não estaria criticando a Parmênides, mas concordando com o eleata. Pois, diz ele: ‘Era o que, meu jovem, já afirmava o grande Parmênides, tanto em prosa como em verso, a nós que então éramos jovens; Jamais obrigarás os não-seres a ser.’ (Sof. 237a) Parmênides afirmava que não se pode tomar os não-seres pelo ser — e aqui, pelo não-ser real. Se Parmênides afirmava isso e se depois Platão faz dos não-seres aquilo que o discurso falso enuncia, então há necessariamente um ponto de concordância com o eleata. Não se pode obrigar os não-seres a ser porque, de fato, eles — os sofistas — tomaram desde já o caminho errado, de um falso Outro, da imagem que produz o outro enquanto allós. Aquilo que deriva da perfeição de uma forma deriva para um intelecto, alma, que contempla as Formas, cada um traz em si a sua própria contemplação, não existe um contemplar pelo outro, no lugar do outro. E se existe, é puramente fabricar aquilo que não provém das Formas, fabricar imagens seria, portanto, fabricar todas as coisas, todos os «não-seres» que não tem relação com a verdade do não-ser Forma, parte constituinte do Outro, heteron. Os sofistas teriam a pretensão de contemplar todas as coisas por todos os outros intelectos, por todas as almas. Estes, que procuram os sofistas, não precisariam do contemplar, pois os sofistas o fazem por eles e para eles. Isso assume um outro aspecto, na medida em que alguém engana a si próprio com o discurso falso que lhe chega à alma, ele é, talvez, pior que aquele que pratica a arte da sofística, ao aceitar falsamente uma contemplação, falsa, ilusionista, que deveria ser buscada por ele próprio, deixa-se conduzir por discursos distanciados das verdades através das imagens, discursos que o sofista o convence serem seus, quando não pertencem nem ao sofista, nem àquele que as compra em seu benefício. Tomando o não-ser pelos não-seres, tomando o não-ser por aquilo que ele não é, não-ser irreal, de fato, o que o não-ser irreal é, ou pode ser, ‘é somente um fruto prematuro de um contato com o real’ (Sof. 259d), longe, distante certamente, equivocado, por certo, mas nada mais que uma Forma derivada para os não-seres que passa a se constituir em allós. Todos que aceitam uma contemplação falsa, pelos lábios e pelo ‘olhar’ de um Outro, que não os seus, e a negligência para com aquilo que a alma um dia contemplou será trocada, comercializada, em troca de pequenas quantias, vindo de uma alma que também nega tal contemplação. O que está implícito aí é a própria verdade de cada alma, está implícito aí o ascender de cada um trocado por muito pouco ou quase nada, a ética de cada um convertida em quase nada porque o sofista pouco pode oferecer do real das Formas, não pode sequer ensinar o verdadeiro caminho do filósofo, do dialético, porque seu caminho é outro, seu objetivo também. Não podem ensinar o caminho da contemplação porque eles próprios não o fazem. A ética de cada ser deveria partir da busca da verdade e da justiça, como pensar que existe ética quando se paga e se recebe por mercadorias que se coloca para dentro da alma e do pensamento?

6.5. A aplicação do não-ser ao erro e ao discurso
Quando no capítulo 3 expusemos uma hipótese de contra-argumentação dos sofistas a Platão referente à Forma-Outro, dizendo que os discursos produzidos pelos sofistas seriam verdadeiros e justificados porque exprimem ‘outro’ que não o discurso do autêntico dialético ou filósofo, podemos aqui retomar esta questão abordando os termos allós e heteron. O discurso falso não é um Outro enquanto eidos, mas outro enquanto allós e sua falsidade deve ser explicada através da produção de imagens dada pelo preenchimento em seu pensamento ou alma de um distanciamento das Formas. Platão fornece em várias passagens do diálogo aspectos que poderiam conduzir a definições do discurso falso, como nas passagens citadas a seguir: Em 259e Platão faz uma referência ao fato de que ‘separar tudo de tudo, não é apenas ofender à harmonia, mas ignorar totalmente as musas e a filosofia.’ [...] É a maneira mais radical de aniquilar todo discurso, isolar cada coisa de todo o resto; pois é pela mútua associação das formas que o discurso nasce.’ Como o discurso e o pensamento são para Platão ‘a mesma coisa, salvo que é o diálogo interior da alma consigo mesma, que chamamos pensamento’ (Sof. 263e) [...] E que ‘a corrente que emana da alma e sai pelos lábios em emissão vocal, não recebeu o nome de discurso? — pergunta o Estrangeiro a Teeteto. Desse modo, se o pensamento — ou o diálogo da alma consigo mesma — ‘separasse tudo de tudo’ não poderia haver o pensar. A falsidade pode, então, se dar não só pela associação equivocada das Formas, mas também pela separação equivocada de Formas que constituem a atividade do pensamento e que é, em outras palavras, o movimento da própria dialética. Por isso, Platão fala em harmonia: na associação e na separação, uma justa medida, metron. Mas uma definição de discurso falso precisa no Sofista está em 263 b-d:

Aquele que é falso diz outra coisa daquela que é. Ele diz, pois, coisas que não são, mas outras, que aquelas que são [...] Assim, o conjunto formado de verbos e nomes, que enuncia, a teu respeito, o outro como sendo o mesmo, e o que não é como sendo, eis, exatamente, ao que parece, a espécie de conjunto que constitui, real e verdadeiramente, um discurso falso (Sof. 263d).

Tomar o Mesmo pelo Outro e o Outro pelo Mesmo é precisamente fazer uma associação ou uma separação equivocada, ou seja, tanto a diairesis como a synagogé são importantes neste processo de apreensão das Formas, tanto pelo pensamento como pela alma, pois ambos estão ligados com a symploké dos elementos do inteligível apreendidos pelo pensar. Assim, vemos que o movimento que perpassa a dialética entre as Formas participa também no pensamento e na alma do filósofo através da divisão (diairesis) e da reunião (synagogé), por isso, o exercício da dialética no pensar seria uma espécie de «contemplação» que o pensamento faz a partir da capacidade de agir e sofrer (dynamis). O eidos do não-ser não é falsidade, mas unicamente condição necessária de sua possibilidade[92], ‘é apenas a forma que possibilita a presença de diversidade no discurso, se o não ser não existisse não haveria diversidade no discurso; se não houvesse diversidade no discurso, só poderíamos repetir tautologicamente o mesmo, e o discurso falso não seria possível’[93]. Marques observa que ‘o não ser é condição de possibilidade tanto para o entrelaçamento (symploké)[94] entre os gêneros inteligíveis como para o discurso articulado; e ainda, ele é condição para o discurso como tal, falso ou verdadeiro’[95]. Lima Vaz explica o discurso falso dizendo que 'o não-ser não está nos termos da proposição falsa[96]; está no nexo da conjunção. Só o juízo, portanto, pode ser falso. [...] Exprime uma 'outra' significação com respeito a determinado logos verdadeiro.'[97] A symploké tem papel ímpar para a apreensão do real que reside nas Formas enquanto perfeitas e verdadeiras e o 'não-ser irreal' explica como esta 'outra' significação — que não exprime a verdade — não vem a ser o próprio não-ser Forma, pois, do contrário, teríamos que admitir uma forma para o falso como elemento inteligível. Esta 'outra' significação é possível por meio da produção de falsas imagens porque o pensamento, no caso dos sofistas, não realiza uma symploké ideal para que a significação 'outra' — a qual justifica a multiplicidade — participe e produza aquilo que realmente «é» verdadeiro.

A ciência suprema é o caminho para o verdadeiro filósofo, enquanto que a arte de produzir ilusões via imagens falsas, será propriamente atividade exercida por aqueles que não exercem a verdadeira dialética com a intenção de buscar a sabedoria. Nesse sentido, o final do diálogo aponta para a distinção entre o filósofo e o sofista o qual traz implícito a intenção de um e outro, pois enquanto o filósofo deseja a sabedoria e a justiça, o sofista busca um auto-benefício em detrimento da verdade. A dialética seria, por conseguinte, 'o caminho mesmo que a alma deve percorrer para atravessar as oposições e as contradições do discurso, ele mesmo fundado sobre o ser, tendo sempre em vista as oposições e diferenças das formas inteligíveis entre elas.'[98]


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A gênese de nossa pesquisa sobre o não-ser começou com a tese de Parmênides de Eléia onde discorremos sobre os fragmentos ontológicos do poema Sobre a Natureza, através do qual analisamos o principal problema do pensamento parmenídico, sendo este o monismo radical em oposição à pluralidade evidente no sensível. Transposto para a afirmação central parmenídica: 'pensar e ser é o mesmo', o pensamento seria tão absoluto quanto o ser constituindo o pensar como único caminho válido para encontrar a verdade. No entanto, o absoluto, também implícito no pensar, tornaria impossível não somente o discurso falso, mas inviabilizaria qualquer linguagem em qualquer discurso, falso ou verdadeiro. Disto decorre que o «ser absoluto» impediria qualquer tipo de justificação para a realidade do movimento, da mudança e mesmo da vida. No que diz respeito ao uso da tese eleata pelos sofistas dos fragmentos ontológicos, em especial ao ‘pensar e ser é o mesmo’, centro da tese do eleata que liga o ser ao pensamento como uma única coisa: una e absoluta, concluímos que o pensamento seria também absoluto inviabilizando o pensamento e o discurso, qualquer que fosse. Por isso, os sofistas não poderiam ter transposto a tese parmenídica para o plano do discurso para justificarem seu relativismo porque seu ponto de partida entra em contradição com a arte da sofística. Consideramos, portanto, que o ‘Parmênides’ dos sofistas não é o Parmênides de Eléia e, assim, podemos dizer que houve a produção de uma «opinião falsa» até mesmo em relação ao eleata. Eis o verdadeiro parricídio cometido contra Parmênides — ou, eis o ‘Parmênides’ dos sofistas transformado em uma falsa imagem. Pressupomos que Platão percebeu a estratégia sofística aplicada ao pensamento parmenídico o qual vai contra sua filosofia — a partir dos sofistas — pois se tudo é verdadeiro a filosofia platônica não é necessária, igualmente, não seria necessário estabelecer uma diferença fundamental entre o sofista e o filósofo. Esta diferença traz implícita a dialética como método e como ciência suprema para ascender às Formas, por conseguinte, à verdade, considerando que esta se encontra nas «essências». A partir disso podemos dizer: para os sofistas a dialética platônica não faz sentido se antes de qualquer coisa a verdade já se estabelece no sensível e tudo é verdadeiro; para Platão, provar a arte ilusionista do sofista é demonstrar que algumas coisas são produzidas como falsas imagens e, no plano do discurso, como falsas idéias. O não-ser aparece para eles como estratégia para justificarem seu discurso falso tornando tudo que é pensado e dito verdadeiro — refúgio para sua falsidade. Dentro desse contexto, nosso objeto de pesquisa era o percurso mesmo de Platão dentro do Sofista para compreendermos como estabeleceu a realidade do não-ser relativo como Forma (eidos) dentro da estrutura ontológica e como demonstrou a existência da opinião falsa, atribuída especialmente à atividade dos sofistas, sem que o não-ser viesse ele próprio a significar falsidade. Supomos que Platão trata a questão do não-ser inicialmente tentando afastar tudo aquilo que o não-ser não pode ser, excluir toda a possibilidade de opinião falsa da própria definição de não-ser antes de estabelecê-lo como Forma no inteligível — esse procedimento mostra o método utilizado por ele no Sofista: a diairesis se revela aqui em seu momento mais elevado: na própria tentativa de definir e estabelecer a realidade do não-ser. Tanto o Outro como suas partes pertencem a uma estrutura ontológica onde as Formas são eidos ou ‘coisas em si’ que participam entre si mesmas através de uma relação onde os elementos do inteligível — as próprias Formas supremas — são responsáveis pela ordenação do sensível na medida em que são apreendidas corretamente pelo pensamento do filósofo e, no seu outro extremo, ‘tomar o mesmo pelo outro e o outro pelo mesmo’ [...] eis, exatamente, ao que parece, a espécie de conjunto que constitui [...] um discurso falso’ (Sof. 263d), convertendo-se em arte ilusionista. Contudo, nessa altura, tal análise nada mais tem a ver com Parmênides de Eléia, este é o próprio pensamento de Platão apresentado no Sofista para resolver a falsidade, entretanto, tem ainda relação com o pressuposto colocado no início do presente trabalho quando afirmamos que os sofistas tornaram a doutrina parmenídica falsa por meio de sua própria arte: tornaram o ‘ser absoluto de Parmênides’ Outro que não o Mesmo — demonstração de que é possível que Platão tivesse feito tal raciocínio para chegar a estabelecer a realidade do não-ser. Assim, se pode entender o não-ser como condição de possibilidade para o discurso falso sem que interfira na forma encontrada por Platão: o não-ser é parte constituinte do ‘Outro’, este é a «diferença». Platão mesmo aponta para isto quando trata sobre o não-ser irreal criado pela arte do simulacro dos sofistas. Estes detêm a falsidade — dizem aquilo que as Formas não são — através de um entrelaçamento (symploké) desordenado da apreensão das Formas, ‘criam’ igualmente uma falsa imagem do não-ser — por isso Platão se refere ao não-ser irreal, pois não é o Outro das Formas que eles apreendem e sim um ‘outro’ irreal — daí as imagens, daí os «não-seres». As falsas imagens, explicadas por um ‘movimento’ do pensamento que se distancia ou se desvia da verdadeira apreensão da essência das Formas puras — como se na passagem destas para o pensar, o eidos, ao ser apreendido, no caso, pelos sofistas, derivasse para o discurso falso e ilusório, os sofistas se ‘perderiam’ por sequer desejarem apreender a verdade do mundo das Formas. A falsidade pode ser justificada pelo ‘movimento’ caótico, desordenado do pensar e do não uso ou mau uso da dialética a qual não visa a verdade-ontológica, antes pelo contrário, chega a desprezá-la, produzindo «não-seres», de onde pressupomos que Platão ao citar Parmênides não o está refutando, mas concordando com o eleata. Por este raciocínio retornamos ao ponto de partida do diálogo onde Platão pergunta por uma distinção entre o autêntico filósofo ou dialético e o sofista-erístico — o que os distingue? O exercício dialético e a intenção de um e outro conduzem por caminhos completamente diferentes, os resultados também serão distintos e a filosofia de Platão torna-se, por conseqüência, necessária para todo o pretendente à sabedoria. O entrelaçamento das Formas supremas e sua apreensão possibilita, então, o discurso do filósofo, o que não implica para o autêntico dialético um dizer falso, mas a possibilidade para que a dialética se efetive através do movimento do próprio pensamento. 'O não-ser ao ser estabelecido como ‘outro’ não possuirá uma existência somente para dizer que significa o que é diferente’[99], mas também para dizer que este ‘diferente’ para o dialético nada tem a ver com o falso — pensado ou enunciado. Os sofistas poderiam derivar o Outro para continuar justificando seus discursos como verdadeiros argumentando que «é» outro que não o discurso do filósofo, pois se o Outro é para Platão a diferença como não enquadrar o sofista dentro da ontologia das Formas supremas? Por isso, abordamos o não-ser irreal como outra fabricação sofista, os sofistas produzem um outro Outro, o allós enquanto não-derivado da verdadeira Forma-Outro. Embora com uma origem ontológica, daí a referência feita pelo Estrangeiro sobre o semelhante, não seria apreendido como o diferente, mas como o falso. As falsas imagens podem assim ser explicadas pela «substituição» da origem verdadeira das essências por um produção humana distanciada destas. O discurso falso dos sofistas é explicado pelo logos quando toma o 'mesmo pelo outro e o outro pelo mesmo', produzindo a falsidade, em termos platônicos: falsas imagens. Contudo, Platão preocupou-se imensamente com a justiça e criar falsas imagens é necessariamente iludir e enganar, pois como mágicos os sofistas fabricam «não-seres» sem correspondência ontológica. A opinião falsa ou o dizer falso que constituem o erro (pseudos), a partir do Sofista, não corresponderá à realidade, quer à ‘realidade’ da situação sensível quer à verdadeira realidade do eidos — o «real realíssimo» — do qual o sensível se origina através da participação. Muitas questões ficaram de lado em nossa tentativa de descrever o percurso filosófico de Platão, pois ainda que o filósofo possua como um dos pontos norteadores o discurso falso dos sofistas a partir de sua atividade dentro do sensível, seu pensamento no Sofista é altamente abstrato, visando uma ontologia que dê conta de explicar ‘todas as coisas’. Mas é somente no Timeu, diálogo que ele escreve após o Sofista, que as questões referentes ao sensível e a participação a partir do inteligível são realmente discutidas.

Igualmente seria possível retomar os diálogos anteriores como o Fédon, o Fedro e a República, por exemplo, e a partir dos resultados obtidos no Sofista analisar questões referentes à teoria das idéias, em que medida se mantém, o que permanece e o que é reformulado e ou ampliado. Nesse sentido, os especialistas tendem a analisar os diálogos anteriores ao Sofista não considerando o que está dito neste diálogo, seria difícil aceitar que Platão, tendo fundado uma Academia que se utilizava, principalmente, da obra platônica para seus estudos, não fosse ele próprio, nos vinte anos em que a dirigiu, retomar constantemente sua obra filosófica, também após ter escrito o Sofista. Por isso, ler os diálogos a partir do Sofista, um percurso inverso, por assim dizer, pode ser um método para encontrar o percurso do filósofo de um modo diferenciado do que, em geral, realizam os comentadores. Estes, normalmente, tratam os diálogos quase sempre como se fossem isolados, talvez seja ignorar a própria dialética existente entre um diálogo e outro, dialética que explicaria, quem sabe, a conexão da obra de Platão sob uma perspectiva diferenciada. Também não abordamos diretamente a questão da linguagem ligada ao discurso: falso ou verdadeiro, pois isto demandaria uma pesquisa muito extensa para o presente trabalho, aqui seria necessário um estudo minucioso, em especial, do Crátilo. O problema da imagem pode ser estudado amplamente a partir do Sofista, sendo analisado através dos «não-seres» e relacionado à teoria das idéias do seguinte modo: se há cópias, simulacros e imagens, é necessário pressupor que algo exista anteriormente como condição para as imagens sensíveis. Em outras palavras, as imagens por si só pressupõem o «real realíssimo» das Formas, para que se possa dizer que as imagens não são o «verdadeiro» é preciso que este haja a existência de uma anterioridade, realista, como condição de possibilidade para as imagens. Talvez seja possível distinguir níveis de imagens como Platão o faz com os graus de conhecimento: o sensível, se tomado todo ele como imagem desde que não é a perfeição das Formas, conteria graus de imagens, daí as falsa imagens e aquelas que não seriam falsas, mas apenas o pressuposto de um realismo da teoria das idéias. Do contrário, sem uma teoria sobre as Formas e sem a ação do demiurgo no Timeu, por exemplo, Platão não teria mais razões em falar em imagens. Mas mesmo no Sofista, e dizemos 'mesmo no Sofista' porque os especialistas tendem a polemizar negando a teoria das idéias a partir do resultado deste diálogo, Platão não abandona as imagens, antes pelo contrário, torna-se subjacente ao problema do discurso falso. Dessa maneira, uma outra hipótese seria a de que nem todas as imagens são falsas e estas, não falsas, constituem-se em um forte pressuposto para a teoria da idéias. Portanto, julgamos nossa pesquisa, considerando tantos assuntos aqui não desenvolvidos, como um ‘fruto prematuro de um primeiro contato com o real’ (Sof. 259d).
NOTAS DE RODAPÉ:
[1] A expressão envolve dois termos centrais da ontologia platônica: não e ser, ligados poderiam levar inicialmente a uma pré-concepção equivocada de que o não-ser seja ou o contrário de ser ou a negação mesma de ser. Por isso julgamos de máxima importância antecipar significados que a partícula de ‘negação’ não possui para a filosofia de Platão: proposição negada, não-existência — nada.
[2] Ressaltamos a tendência que os comentadores possuem, em sua maioria, em dizer: 'o não-ser é Outro', não levando em consideração a passagem onde Platão diz claramente: o não-ser é parte constituinte da natureza do Outro. A nosso ver, isto muda a definição, pois, neste caso, o não-ser não é o Outro, pois o Outro como Forma suprema é que possui partes que acabam por constitui-lo, estas partes são as partes do não-ser.
[3] A maior parte dos comentaristas situa o Sofista após o Teeteto e antes do Político. Está entre os diálogos ditos metafísico: Parmênides, Teeteto, Sofista, Político. Segundo D. Ross este grupo de diálogos revela um interesse pelo eleatismo que, anteriormente a eles, esteve ausente. No entanto, Platão não havia se convertido ao eleatismo, estava completamente de acordo em que a razão é fidedigna e os sentidos não o são, mas encontrou inteiramente insatisfatória a doutrina de que não existe mais que uma realidade única e um uno imutável. Cf. Ross, David. Teoría de las ideas de Platón. p. 103.
[4] Embora muito distante do que seria a oralidade do próprio Platão. No entanto, o texto desenvolvido nesta pesquisa não fará uma abordagem na linha das Doutrinas Não-Escritas, será mantido em linhas de interpretação da tradição clássica da filosofia platônica.
[5] Estas seis definições podem ser observadas através das tabelas constantes no anexo no final do trabalho, a sétima e última definição abrange a passagem final do diálogo: o retorno à definição do sofista (264c— 268d).
[6] Após as seis tentativas de definições Platão faz uma recapitulação de todas elas, surgirá então, na seqüência do texto, a questão do não-ser ligada ao discurso falso.
[7] Vaz, H.L. Ontologia e História. São Paulo: Duas Cidades, 1968, p. 21.
[8] Diès, A. Notice sur Théétete. In: Platon. Théétete. Texte établi et traduit par A. Diès. C.U.F. Paris: Les Belles Lettres, 1925, p. 141.
[9] Não concordamos com a análise dessa citação de A. Diès sobre o uso do poema de Parmênides pelos sofistas, por isso, no primeiro capítulo discorremos sobre a contradição existente neste ponto em relação aos sofistas.
[10] Nos permitimos não discorrer na introdução sobre as questões que envolvem a pergunta, nosso objeto de pesquisa, pois isto está desenvolvido no primeiro capítulo do texto.
[11] ‘Entendemos a ciência dialética como a ciência discursiva das Idéias. A Idéia [Forma] é o inteligível puro, ao qual compete, por essência, a existência objetiva. Cf. Vaz, H.L. Ontologia e história..., 1968, p. 15.
[12] Praticamente todo o material bibliográfico dos especialistas franceses nos foi cedido de forma extremamente generosa pelo Professor Doutor Marcelo Pimenta Marques da UFMG-FAFICH, especialista no pensamento de Parmênides e Platão. Agradecemos igualmente o acesso a sua tese de doutorado, realizada na Universidade de Strasbourg, intitulada: L’autre et les autres: a propos de l’alterité dans le Sophiste de Platon.
[13] Marques, Marcelo. O caminho poético de Parmênides. São Paulo: Loyola, 1990, p. 13.
[14] No seu texto L´histoire du texte de Parménide, Cordero diz que o poema vem a ser ‘uma série de fragmentos de um poema com aspectos filosóficos atribuído desde a antiguidade a Parmênides [...]’. E pergunta: ‘Todos esses fragmentos pertencem a uma única obra? Encontramos no interior desses fragmentos o núcleo central do pensamento de Parmênides? Jamais teremos completa certeza. Além disso, e como complicação suplementar, Platão faz alusão ao ensino « em prosa » de Parmênides (Sofista 237a). Este ensino era oral ou escrito? Nós não o podemos saber. Há uma única realidade: uma certa quantidade de versos — agrupados ou isolados — escritos no final do século V [a.C.] por Parmênides, a partir dos quais, em um dado momento, os eruditos têm tentado reconstituir o « poema » original. Cf. Cordero, N.L. L´histoire du texte de Parménide. In: Aubenque, P. (Dir.) Études sur Parménide: problèmes d’interpretation. tome II. Paris: Vrin, 1987, p. 3-4.
[15] Lembramos através de O’brien que ‘o texto do poema, como se sabe, não é atestado pela tradição direta; somente foi conservado nos manuscritos de vários autores antigos que o citaram através de extratos.’ Cf. O’brien, D. Problèmes d’établissement du texte. In: Aubenque, P. Études sur Parménide: problèmes d’interpretation. Tome II. Paris: Vrin, 1987, p. 314.
[16] Cf. Cordero. L´histoire du texte de Parménide..., 1987, p. 3.
[17] Cf. Cordero, N. op.cit., p. 3.
[18] Os comentaristas interpretam o poema de maneira bastante diferenciada, principalmente em função das traduções. O’Brien, por exemplo, diz que em relação ao ‘ser’ de Parmênides existem as seguintes traduções:
duas pronominais, uma epistêmica e duas ontológicas, dependendo da escolhida se possui um tipo de compreensão do que seja o ‘ser parmenídico’. Buscar compreender a Verdade, apresentada ao Jovem através dos ensinamentos da Deusa, realizando uma relação com a presença ou ausência do sujeito ao referir-se ao ‘ser’, é questão, segundo O’Brien, extremamente diversa entre os trabalhos filológicos apresentados pelos especialistas. Cf. O’brien, D. Le non-être.Deux études sur le Sophiste de Platon. Sankt Augustin: Academia Verlag, 1995, p. 5-9.
[19] ‘A cronologia de Parmênides varia entre 535-510 a.C. para o nascimento e 465-440 a.C. para sua morte, tal como pode ser atestado entre os diversos comentadores.’ Cf. Marques, M. P. O caminho poético de Parmênides... , 1990, p. 13.
[20] Pierre Aubenque, citado por Marques, cf. op.cit., p. 13.
[21] Marques destaca que ‘é realmente inegável que uma viagem ao céu, partindo do domínio da Noite para o da Luz, onde mora a deusa, evoca diversas experiências místico-religiosas da época: xamanísticas, órficas ou pitagóricas, mas é difícil determinar a que ponto Parmênides se filiava a uma ou outra destas correntes. Uma coisa é evidente: a atmosfera que seu pensamento respira é impregnada de religiosidade.’ Cf. Marques, M. op.cit., p. 44.
[22] ‘Há em Parmênides uma herança marcada fortemente por Hesíodo, sendo que ‘Couloubaritsis destaca Hesíodo como fonte principal de Parmênides’. Cf. Marques, M. op.cit., p. 22.
[23]O Poema de Parmênides é uma epopéia filosófica: «Odisséia espiritual», essa pesquisa cognitiva, ameaçada pela errância, de um ser excepcionalmente guiado pelo divino.’ Cf. Cassin, B. Le chant des sirènes dans le poéme de Parménide. In: Aubenque, P. (Dir.) Études sur Parménide: problèmes d’interpretation. Tome II. Paris: Vrin, 1987, p. 163.
[24] Cf. Marques, M. O caminho poético de Parmênides..., 1990, p. 35-36.
[25] Kirk, G.S.; Raven, J.E.; Schofield, M. Os filósofos pré-socráticos. Trad. Carlos Alberto Louro Fonseca, Beatriz Rodrigues Barbosa, Maria Adelaide Pegado. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, 1994, p. 253.
[26] Cf. Kirk-Raven..., op.cit., p. 254.
[27] Cf. Marques, M. O caminho poético de Parmênides..., 1990, p. 51.
[28] Cf. Kirk-Raven-Schofield. Os filósofos pré-socráticos..., 1994, p. 255.
[29] Cf. K Kirk-Raven-Schofield. op.cit., 1994, p. 260.
[30] Cf. Souza, J. C. Os pré-socráticos..., 1991, p. 79-80.
[31] Cf. esta exposição completa sobre a interpretação de O’Brien em sua obra Le non-être...,1995, p. 4-9.
[32] Cf. O’brien, D. Le non-être..., 1995, p. 4-9.
[33] Marques coloca que ‘a discussão dos sentidos do verbo ser se articula com a questão do seu sujeito, que gera ainda maiores e mais complexas discussões’. Além disso, concorda com a posição de Couloubaritsis que opta sempre pela polissemia do verbo ‘ser’, pois há um movimento próprio no poema que permite distinguir variações de significações. Cf. Marques, M. O caminho poético de Parmênides..., 1990, p.59. Pensamos que essa leitura do poema tende a resolver questões contraditórias quando é realizada sem o diferencial polissêmico. Por exemplo, tomemos a questão da negação da existência do não-ser e a afirmação da via da doxa como pura ilusão do mundo sensível, uma interpretação que não leve em consideração a polissemia do verbo acaba gerando contradição, pois então Parmênides estaria proibindo ao mesmo tempo: um caminho que existe — o não-ser — mas que é o mundo da doxa ou sensível — conclusão: a vida deveria ser evitada, com exceção do pensamento, mas como este pensamento poderia ser efetivado sem a própria vida? A polissemia tende a resolver esses problemas, contudo é difícil crer que Parmênides iniciando um pensamento sobre o ser pudesse já ter consciência de todas essas questões.
[34] Cf. Marques, M. op.cit., 1990, p. 46.
[35] ‘Todo o prólogo é permeado por imagens de mediação. O tema da ‘viagem’ já carrega em si mesmo um sentido de transição [...]’ além disso, ‘as diversas figuras divinas presentes no prólogo e no resto do poema, as Heliádes [jovens moças filhas do Sol que conduzem o carro que transporta o Jovem na viagem ao em direção à divindade] Díke, Anánke, Alétheia, Moîra, não seriam mais do que os diversos nomes de uma mesma divindade que se manifesta de diversas formas.’ Cf. Marques, M. op.cit., p. 46-48.
[36] Cf. Cornford, F. M. La teoria platonica del conocimiento. Buenos Aires: Paidos, 1983, p. 201.
[37] ‘1. Aristóteles, Metafísica, I, 5.986 b 18 (DK 28 A 24) Parmênides parece estar vinculado à unidade [...] Julgando que fora do ser o não-ser nada é, forçosamente admite que só uma coisa é, a saber, o ser, nenhuma outra... Mas constrangido a seguir o real (tois phainoménois), admitindo ao mesmo tempo a unidade formal e a pluralidade sensível, estabelece duas causas e dois princípios: quente e frio, vale dizer, Fogo e Terra. Destes (dois princípios) ele ordena um (o quente) ao ser, o outro ao não-ser. —Id., ibid., III, 5. 1010 a1: examinado a verdade nos seres, como seres admitia só as coisas sensíveis.’ Em outra passagem diz Aristóteles: ‘uns negam absolutamente geração e corrupção, pois nenhum dos seres nasce ou perece, a não ser em aparência para nós. Tal é a doutrina da escola de Melisso e Parmênides, doutrina que, por excelente que seja, não pode ser fundada sobre a natureza das coisas. Pois, se existem seres engendrados e absolutamente imóveis, pertencem mais à ciência outra que não à da natureza, e anterior a ela. Mas estes (filósofos), ao conceberem a existência apenas para a substância das coisas sensíveis, crendo plenamente nisso, e os primeiros naquilo, i. e., que sem tais naturezas imóveis não pode haver nem conhecimento nem sabedoria, não faziam mais que transferir aos seres sensíveis as razões só válidas para as realidades. — Id., Da Geração e Corrupção I, *.325 a 13: Partindo desses raciocínios, deixando de lado o testemunho dos sentidos e negligenciando-o sob o pretexto de que se deve seguir a razão, alguns pensadores ensinam que o todo é um, imóvel e ilimitado; pois o limite só poderia limitar em relação ao vazio. Tais são as causas pelas quais esses (pensadores) desenvolveram as teorias sobre a verdade. Certamente, segundo este raciocínio, parece suceder assim com estas coisas: mas, se se tomam em conta fatos, semelhante opinião parece-se uma loucura.’ Cf. Os pré-socráticos: fragmentos, doxografia e comentários. Trad. J. C. de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p. 77. Assim, Aristóteles parece criticar o ser absoluto de Parmênides no mesmo sentido em que o tentamos explicar: como pode sendo uno ser também múltiplo sem perder sua unidade e, na multiplicidade evidente do sensível, como poderia ainda pretender encontrar a ‘verdade’ oriunda do ‘ser’ em um ‘mundo’ que não reflete aquele do ‘ser’?
[38]Nietzsche comenta sobre isso também, mas sem desmerecer o fato de que Parmênides teria em sua filosofia o prelúdio do tema da ontologia, diz ele: ‘No fim da sua vida, provavelmente, Parmênides teve um momento da mais pura abstração, [...] cujo produto é a teoria do ser. [...] Mas ninguém se engana impunemente com as abstrações tão terríveis como são o ser e o não-ser’ [...] O pensamento e aquele ser modular e esférico, completamente morto e maçiço. imóvel e imutável, precisavam, segundo o imperativo de Parmênides e para o terror da imaginação, coincidir e ser totalmente um e mesmo. Esta identidade pode contradizer os sentidos! [...] No restante, poder-se-ia apresentar contra Parmênides poderosos argumentos [...] através dos quais não viria à luz a verdade, mas sim a inverdade daquela separação entre mundo dos sentidos e mundo dos conceitos e daquela identidade entre ser e pensar. Primeiramente, se é real o pensamento da razão por conceitos, então a multiplicidade e o movimento também precisam ter realidade, pois o pensamento racional é móvel, é em verdade um movimento entre conceitos, logo entre uma quantidade de realidades. Contra isso não existe nenhum subterfúgio, é completamente impossível qualificar o pensamento como um rígido permanecer, como um eterno e imóvel pensar-se-a-si-mesmo na unidade. [...]’. Em seguida Nietzsche coloca a questão de que o movimento também deveria ser ‘ser’, mas ele está ‘fora do vir-a-ser, é eterno, indestrutível, não é suscetível de aumento nem de diminuição. Se a aparência deste mundo é negada com o auxílio daquela pergunta pela origem da aparência, fica ao abrigo da condenação de Parmênides o palco do chamado vir-a-ser, a mutação.’ Cf. Nietzsche, F. op.cit., p. 84-91.
[39] Como podemos conhecer verdadeiramente alguma coisa? Relembramos outras teorias apresentadas nos diálogos platônicos: no Fédon, a teoria da reminiscência, no Fedro, a contemplação que a alma faz das Formas eternas e verdadeiras e das quais se pode lembrar através do exercício dialético. É claro que não há referência direta no Sofista, quanto a essas teorias, além do mais constitui uma imensa polêmica se Platão teria abandonado a teoria das idéias apresentada no Fédon e na República, principalmente, após ter escrito o Sofista, ou se apenas a teria reformulado, mas pensamos ser importante mencioná-las aqui.
[40] Vaz, H. L. Ontologia e História..., 1968, p. 21.
[41]‘Non, jamais tu ne plieras de force les non-êtres à être; De cette route de recherche écarte plutôt ta pensée’. Cf. Soph. 237 a. Platon. Le Sophiste. Texte établi et traduit par A. Diès. C.U.F. Paris: Les Belles Lettres, 1925.
[42] Cf. Vaz, H.L. Ontologia e história..., 1968, p. 21.
[43] Já Diès observa que ‘o argumento não é senão a transposição do ‘ser absolutamente uno’ dos eleatas para o plano lógico do discurso para confirmarem o individualismo dos sofistas e a teoria do homem-medida de Protágoras’, no entanto, é exatamente esta interpretação de Diès adotada por quase todos os especialistas que estamos refutando neste capítulo considerando o que já foi dito: como seria possível o relativismo justificado através do ‘ser absolutamente uno’? Cf. Diès, A. Notice sur Théétete. In: Platon. Théétete..., p. 141.
[44] ‘Platão cita textualmente Parmênides em cinco passagens: uma vez no Teeteto (180d), a propósito da tese da unidade e da imobilidade do Uno-Todo; uma vez no Banquete (178b), a fim de afirmar a prioridade de Eros; e três vezes no Sofista: para estabelecer, às duas reprises, a tese que o conduzirá ao «parricídio» (Sof. 237a e 258d).’ Cf. Cordero. L’histoire du texte de Platon. In: Aubenque, p. Études sur Parménide..., p. 4-5.
[45] Muito interessante a análise de Cordero em relação a possível crise que o pensamento de Platão estaria passando após a fase descrita por ele a seguir: “No que se refere a sua filosofia, Platão colocou em termos um ‘sistema’ que, em resposta ao relativismo sofístico, reivindica um conhecimento objetivo, o que supõe a realidade total e perfeita do objeto de conhecimento. Esta realidade é representada pelas Formas eternas. Estas permitem justificar ou ‘garantir’ a existência de um universo sensível, e, no que concerne à atividade humana, elas ‘causam’ nossas ações, das quais elas são a causa final. O Menon, o Fédon, o Banquete, o Fedro e outros diálogos demonstram a solidez desse ‘sistema’, cujo ápice é alcançado por volta de 370 a.C., com a República. O fundamento e os degraus do conhecimento, a justificação do saber, o estatuto das Formas, a constituição da alma, o papel [função] e a responsabilidade do filósofo, bem como uma série de questões ligadas a esses assuntos fundamentais, eis o que Platão havia tratado de uma maneira clara e distinta nesses diálogos onde a República foi seu ápice. Cf. Cordero. Introduction. In: Platon. Le Sophiste (Texte Intégral) Traduction inédite, introduction e notas por Nestor L. Cordero Paris: GF Flammarion, 1993, p.12.
[46] Cf. Vaz, H. L. Ontologia e história..., 1968, p. 22.
[47] Cf. Paviani, J. Filosofia e método em Platão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, p. 730-731.
[48] Esta estrutura ontológica estabelecida no decorrer do diálogo são as cinco Formas ou Gêneros supremos e relativos: Ser, Repouso, Movimento, Mesmo e Outro.
[49] Diès exprime, através de uma fórmula de Th. Gomperz, a ligação existente entre as duas partes do diálogo quanto ao assunto: a primeira, é a demonstração da possibilidade do erro fundada sobre o reconhecimento de uma certa realidade do não-ser, a segunda, são as definições do sofista. Como os dois assuntos têm uma relação central, podemos considerar que perpassam todo o texto do diálogo. Cf. Diès, A. Notice sur le Sophiste. In: Platon. Le Sophiste..., 1925, p. 267-268.
[50] Cf. Vaz, H. L. Ontologia e história..., 1968, p. 23.
[51] Cf. Vaz, H. L. op.cit., p. 22.
[52] A verdade reside nas Formas (eidos), na essência das coisas em si mesmas, chega-se a elas por meio da dialética. Tomamos o referido termo no sentido clássico da tradição no que se refere ao realismo: as Formas ou idéias para Platão estão numa realidade supra-sensível independentes e aprioristicamente em relação ao sensível. Cf. verbete Formas no Glossário em anexo.
[53] É complexo tentar definir o termo ‘dialética’ na obra de Platão, considerando que ele faz uso de vários métodos ao longo de todos os diálogos: nos diálogos da primeira fase Platão se utiliza do método refutativo e os diálogos terminam em aporia; na segunda fase os diálogos mostram sobretudo hipóteses, são hipotéticos; na terceira fase Platão trabalha com o método da diairesis, é o método do Sofista, uso da divisão e síntese. Desejamos somente chamar a atenção para o fim principal da dialética, pois ainda que haja diferenças entre os métodos apresentados ao longo de toda obra platônica, o importante é que todas tinham, muito provavelmente um só e grande objetivo: ascender à verdade que só pode ser encontrada no inteligível e através do exercício dialético, seja qual for que Platão tenha mantido como o ‘verdadeiro’ no final de sua vida.
[54] No Sofista Platão fornece uma definição de pensamento e discurso e logo a seguir aponta para a diferença entre ambos: ‘Estrangeiro: — Pensamento e discurso são pois a mesma coisa, salvo que é ao diálogo interior e silencioso da alma consigo mesma, que chamamos pensamento (Sof. 263e)’. Em seguida pergunta a Teeteto se ‘a corrente que emana da alma e sai pelos lábios em emissão vocal, não recebeu o nome de discurso’. E, neste, conforme segue o diálogo, há afirmação e negação, mas quando isso se dá na alma e no pensamento, silenciosamente, então o pensamento é opinião e quando esta última se associa à sensação então se tem a imaginação. Cf. Sof. 263e — 264b.
[55] O mundo metafísico e ideal, inteligível puro e transcendente e inteiramente ‘a priori’ com respeito ao sensível é tratado desde o diálogo Parmênides através da ‘discussão de Sócrates com Zenão e Parmênides que indicara a necessidade de conceber e mostrar a Sócrates o instrumento privilegiado da discussão dialética que lhe fará seguramente contemplar a verdade das Idéias: legitimar a teoria das idéias, este é o ponto central da dialética. Ela [discussão dialética] deve, diz Parmênides (Parm. 136b) tratar em última análise do ser e do não-ser, problema que o Sofista terá que enfrentar’. [...] Principalmente após a aporia do diálogo Teeteto que significou contra Protágoras, a impossibilidade de colocar o objeto da episteme no plano da sensação e da opinião. A problemática do Sofista está toda aqui. Nasce toda ela de uma aparente contradição inicial: se as idéias são unas em si mesmas, separadas e imóveis em oposição ao fluxo sensível, como podem ser objeto de uma ciência [a dialética] que procede por atribuição e negação e avança portanto através de um movimento lógico [...]?’ Cf. Vaz, H. L. Ontologia e História..., 1968, p. 18-23.
[56]‘L’Étranger — C’est que nous voilà réellement, bienheureux jeune homme, devant une question extrèmement difficile. [...] Quelle formule, en effet, trouver pour dire ou penser que le faux est réel, sans que, à la proférer, on reste enchevêtré, dans la contradiction? [...] L’audace d’une pareille assertion est qu’elle supose être le non-être: point de fausseté possible, en effet, sans cette condition. Or le grand Parménide, mon enfant, aux enfants que nous étions alors, l’attesta sans trève ni répit, en prose comme en vers: “Non, jamais tu ne plieras de force les non-êtres à être; De cette route de recherche écarte plutôt ta pensée.’ Cf. Diès. A. Platon. Le Sophiste..., 1925, p. 336.
[57] Dixsaut analisa que ‘o fato mesmo de se traduzir λoγος por «tese», nos três pedidos do Estrangeiro (como o fazem Diès e Robin), é um improviso que prejudica a análise: o logos de Parmênides será examinado em seu conteúdo, em seu enunciado (e não em seu modo de enunciação)’. Cf. Dixsaut, M. Platon et le logos de Parménides. In: Aubenque. Études sur Parménide..., p. 217.
[58] Talvez seja radical demais afirmar que Platão refuta Parmênides e comete o «parricídio» em relação ao ser absoluto, pois se considerarmos que na República o Bem é uma espécie de Primeiro Princípio, considerarmos que nas doutrinas Não-Escritas haveria um Primeiro Princípio acima de todas as outras Formas, então não haveria uma eliminação do ser absoluto parmenídico, mas uma «ampliação» através das Formas relativas. A refutação, se é possível afirmá-la em alguma parte do Sofista, daria-se somente em relação ao não-ser enquanto interdição eleata onde Platão decide ir em frente, ignorando os conselhos do pai Parmênides. Quanto à citação feita em 237a, e repetida mais adiante no diálogo, nossa hipótese é a de que Platão concorda com Parmênides quando se refere aos «não-seres».
[59] Vaz, H.L. Ontologia e História..., 1968, p. 21.
[60] Cornford traduz a referida passagem (Sof. 237a) por: ‘A audácia de tal afirmação consiste em que implica que ‘o que não é’ tem ser; porque de nenhum outro modo poderia o falso chegar a ter ser. [...] o grande Parmênides, sustentou absolutamente o contrário: Jamais se provará isto: que as coisas que não são, são; mas, tu, em tua indagação, afasta teu pensamento desse caminho’. A passagem de Cornford através da tradução espanhola: ‘Extr. La audacia de la afirmación consiste em que implica que ‘lo que no es’ tiene ser; porque de ningún outro modo podría lo falso llegar a tener ser. Pero, mi joven amigo, cuando nosotros teníamos tu edad, el gran Parménides sostuvo absolutamente lo contrario, diciéndonos a cada momento lo que también narra en su poema: “Jamais se probará esto: que las cosas que no son, so; pero tú en tu indagación, aparta tu pensamiento de esse camino."' Após, o comentador dirá: ‘falsas são as coisas que não são’. No contexto de sua análise, Cornford acaba por deixar implícito que o não-ser é o falso quando diz: ‘falsas são as coisas que não são’. Cf. Cornford, F. M. La teoria platonica del conocimiento..., 1983, p. 185-186.
[61] Platão, após estabelecer a realidade do não-ser como parte do Outro, dirá que o discurso falso é quando se toma o mesmo pelo outro e o outro pelo mesmo, desse modo, não é o não-ser que é o falso, mas a apreensão equivocada do pensamento que todavia reside no sensível.
[62] Se o ser absoluto é um ser transcendente não poderia se diluir na multiplicidade do sensível sem que deixasse de ser uno, principalmente na linguagem e nos discursos relativistas, estes seriam, no máximo tautológicos, pois com sua origem no absoluto como poderiam ser múltiplos? Se o ser absoluto é caminho de investigação que conduz à verdade como poderia estar diluído na multiplicidade do sensível? Se o ser absoluto é a própria multiplicidade como poderia ser absoluto? Se o absoluto se refere à existência de cada ser como poderia haver tantos seres individuais? Se o absoluto é imóvel e eterno, não pode ser múltiplo, nem conter movimento ou devir, isso exclui a possibilidade de que esteja presente em cada ser de forma diferente e múltipla, também no pensamento e no discurso. Os especialistas procuram pelo sujeito do verbo « ser » de Parmênides, mas pensamos que o problema está anteriormente ao sujeito, está em ser absoluto, pois não mudaria o problema classificá-lo em existencial, veritativo ou predicativo: se for existencial, como pode ser múltiplo na existência de tantos seres? se for veritativo como pode ser a verdade se os seres são os mortais da terceira via? se é predicativo como poderia ser absoluto predicando coisas diferentes à toda multiplicidade do mundo das aparências? Assim, optar por este ou aquele sujeito não elimina o problema que é anterior a tais classificações: está em ser absoluto.
[63] A conclusão, segundo Lima Vaz é a seguinte: se ‘o não-ser se apresenta como impensável, impronunciável, é incapaz, portanto, de ser expresso pelo discurso. Cf. Vaz. Ontologia e história..., p. 25.
[64] ‘O estudo da idéia de imagem é, entretanto, uma caixinha de surpresas: desde que se retire a tampa, essa caixinha — como a jarra de Pandora — deixa escapar uma série interminável de problemas. São esses problemas que puseram Platão a escrever o Sofista. “Que uma coisa apareça ou pareça, sem, entretanto, ser, e dizer alguma coisa, sem entretanto dizer a verdade, eis que tudo isso está cheio de dificuldades, não somente agora e no passado, mas sempre. Pois é totalmente difícil de encontrar um meio para explicar que dizer ou pensar o falso, seja real, sem ser enredado em uma contradição quando se pronuncia isto.” (236e). Essa passagem é um verdadeiro programa de ação. Falar de “imagem” supõe a possibilidade de dizer (legein) e pensar o que é falso, e isso supõe, como fundamento, que o não-ser existe. Se a argumentação consegue demonstrar que tudo isso é possível, o sofista é um falsificador; se ele não consegue, o sofista é absolvido.’ Cf. Cordero. Introduction. In: Platon. Le Sophiste..., 1993, p. 36.
[65] Cf. Marques, M. L’aporie de l’image. In: L’autre et les autres: a propos de l’altérité dans le Sophiste de Platon. França: Universite de Sciences Humaines de Strasbourg, 1997. p. 176.
[66] A expressão ‘todas as coisas’ é utilizada por Platão várias vezes no Sofista, entendemos como referindo-se à ontologia capaz de explicar a origem da realidade sensível. Em 233e, Platão usa a expressão para criticar a atividade dos sofistas que se afirmavam capazes, ‘não de explicar nem contradizer, mas de produzir e executar, por uma única arte, ‘todas as coisas’ (Sof. 233d). Nessa passagem Platão se refere claramente a uma metafísica, pois realiza uma crítica aos sofistas os quais se fazendo passar por aqueles que criam o próprio mundo, como pretensos deuses, ‘criam’ a realidade sensível, para Platão esta possui sua origem em uma realidade ontológica. A passagem seguinte já aparece na República (Rep. 596c) com alguma variação, citamos aqui a da continuidade do Sofista: ‘ Estrangeiro: Ora, minha expressão ‘todas as coisas’ quer dizer tu e eu e, além de nós, tudo o que mais há, tanto os animais como as árvores’ (Sof. 233e) ‘o mar, a terra e o céu, e os deuses e tudo o mais. Produzindo de um só golpe, uma e outra destas criaturas, ele as vende por uma quantia bem pequena.’ (Sof. 234 a) O descaso dos sofistas com a verdade-ontológica do mundo das Formas é ironica e severamente criticado por Platão nesta passagem: As artes ilusionistas: a mimética (Sof. 233b — 237a) a qual é classificada pela maior parte dos comentaristas como constituindo a sétima definição do sofista. Cf. trad. Paleikat. Sofista. p. 151.
[67] Importa observarmos o significado de mímesis: ‘imitação’: ‘ele [o sofista] está incluído na arte da mimética [...] a imitação é, na verdade, uma espécie de produção; produção de imagens, certamente, e não das próprias realidades.’ Cf. Sof. 265b.
[68] Vaz diz que ‘se a “imagem” se impõe ao “verdadeiro” e o verdadeiro é o “ser realmente tal” deve-se dizer que a imagem é um “não-ser realmente tal”. A tradução é polêmica entre os especialistas, assim como Lima Vaz, pode-se ler da mesma maneira em Burnet, Cornford e outros. ‘Mas como mostrou este último, a construção é impossível em grego e dá um sentido falso: a imagem não é um ‘não-ser absolutamente’, pois tem um ser de semelhança. Devendo-se manter a leitura de b7 e traduzir: “Assim, o que chamamos imagem, é realmente um não-ser real?” Cf. Vaz. Ontologia e história..., p. 25-26. No entanto, nossa interpretação a partir da tradução de Paleikat, funcionaria da mesma forma segundo a tradução de Lima Vaz, pois na medida em que se pergunta pela imagem como sendo realmente um não-ser real, podemos responder que não, a imagem não é um ser real enquanto Forma do não-ser, logo irreal, portanto, a tradução utilizada por nós —“não-ser irreal” — não compromete nossa interpretação.
[69] Cf. Cornford, F. M. La teoria platonica del conocimiento..., 1986, p. 183.
[70] Pensamos haver no início do Sofista uma espécie de pré-explicação sobre a opinião falsa quando o Estrangeiro diz: — ‘Pois bem! Não notamos que na alma dos maus há um desacordo mútuo e geral entre opiniões e desejos, coragem e prazeres, razão e sofrimento? (Sof. 228b). Platão provavelmente já se refere nessa passagem a uma falsa apreensão das Formas puras e uma comunhão desordenada o que conduz a alma não só para a falsidade, mas igualmente para o distanciamento do Bem, ainda que ele não faça referência no Sofista a alguma forma suprema que estaria acima das cinco estabelecidas no diálogo como uma espécie de princípio supremo.
[71] Cf. Luft, E. Contradição e dialética..., 1996, p. 477.
[72] ‘O argumento dialético está no entrelaçamento, symploké, das idéias que dão origem ao discurso’. Paviani observa que este entrelaçamento dá origem a diversas dificuldades: ‘a do entrelaçamento das idéias com os nomes; a da relação de compatibilidade ou incompatibilidade entre idéias; o do entrelaçamento das idéias não ditas e dos gêneros supremos; o da relação entre a natureza do discurso com o não-ser’. Cf. Paviani. Filosofia e método em Platão..., p. 188. Essas dificuldades se dão já num nível da própria linguagem e do discurso, portanto, se referem já à ‘participação’ das Formas supremas no sensível, importa, por isso, dizer que nossa intenção é procurar entender sobretudo o caminho percorrido por Platão no que se refere a sua ontologia: em como ele chegou a estabelecer a realidade do não-ser e posteriormente em como a opinião falsa pode ser explicada a partir disso. Contudo não é possível, dada a complexidade do assunto, nos determos detalhadamente na questão da linguagem e do discurso além de uma explicação que vise diretamente à da opinião falsa sem nos atermos nas inúmeras questões que esse assunto suscita.
[73] Pois tomam o Mesmo pelo Outro e o Outro pelo Mesmo, um exemplo poderia ser: tomam a herística como ciência suprema ou tomam a dialética como herística reduzindo a busca da sabedoria a uma mera disputa verbal pela própria disputa.
[74] Cf. O’Brien. Le non-être..., 1995, p. 11.
[75] Cf. Vaz. Ontologia e história..., 1968, p.
[76] Cf. Vaz. op.cit., p.
[77] Cf. Marques. O caminho poético de Parmênides..., 1990, p. 14.
[78] Cf. Diès. Notice sur Le Sophiste..., 1925, p. 274.
[79] Cf. Diès. op.cit. p. 272-274.
[80] Cf. Cornford. La teoria platonica del conocimiento..., 1983, p. 199.
[81] Sobre essa análise ver a exposição de A. Diès. Cf. Diès. Notice sur Le Sophiste..., 1925, p. 290-292 .
[82] ‘Os Amigos das Formas — únicos detentores da verdade no tempo em que Sócrates possuía o papel principal — serão colocados no Sofista no mesmo nível que seus opositores, os Filhos da Terra. E, enfim, a nova filosofia a qual Platão fará o elogio (a técnica dos homens livres, que faz seu caminho no meio do lógoi: a dialética) será muito afastada do ofício desses curandeiros-purificadores.’ Cf. Cordero. Introduction. In: Platon. Le Sophiste..., p. 30.
[83] Ritter citado por Ross. Cf. Ross. La teoría de las ideas de Platon..., p. 127-135.
[84] Cf. essa exposição sobre os Amigos das Formas em Ross. La teoría de las ideas de Platon..., p. 127-135.
[85] Cordero analisa que ‘as duas posições [...] representam os dois princípios fundamentais para explicar a realidade. Mas esses dois princípios são opostos. [...] A solução que Platão encontrará deve se apoiar sobre a coexistência necessária de dois sistemas opostos. Por que os dois sistemas são opostos? Um afirma que a realidade existente é constituída por Formas inteligíveis e incorporais (246b9), enquanto que, para o outro, tudo que é real [depende] dos corpos (246b1). As Formas, por exemplo, enquanto indestrutíveis, eternas, inalteráveis e imutáveis, supõem, como fundamento, o repouso. Os corpos [...] supõem a mudança.. Além disso, o corpo é, por excelência, aquele que é animado (246e5), e os Gregos sabem desde — pelo menos — a época de Homero que a alma é sinônimo de movimento. Confrontado com essa oposição, Platão poderia ter seguido o exemplo de seus predecessores: escolher um dos dois lados. Mas ele preferiu fazer como as crianças em seus desejos: ele escolheu... os dois (249d3), e ele demonstrou para cada oposição que a outra parte tem, ela também, razão. Os Amigos das Formas fizeram do conhecimento a atividade principal do filósofo [...] devem então admitir a realidade da mudança. Senão, eles deveriam negar a possibilidade do conhecimento. Mas os ‘materialistas’ devem admitir, de seu lado, que o conhecimento supõe um objeto estável, pois, ‘se tudo se desloca e muda, o intelecto (logos) será excluído dos seres” (249b). Cf. Cordero.
Introduction. In: Platon. Le Sophiste..., p. 16-33.
[86] Na Carta VII, Platão fala a respeito da definição tomando como exemplo o nome: 'O nome, afirmamos nós, não tem qualquer fixidez. Quem pode impedir que se chame direito ao que nós chamamos circular ou circular ao que nós chamamos direito? O valor significativo não será menos fixo mesmo que se faça esta transformação e se modifique o nome. Diremos o mesmo da definição, já que é composta de nomes e verbos: nada tem de suficientemente sólido. [...] Não é a qualidade, mas a essência que a alma procura conhecer. Cada um dos quatro modos dão o que ela não procura; tanto nos raciocínios como nos fatos.' É possível pressupor que as definições dadas pela linguagem não são suficientes para que a alma conheça aquilo que realmente é: as essências, Formas, idéias ou ainda, nas palavras de Lima Vaz: 'o real realíssimo'. Cf. Platão. Carta VII. 3. ed. Lisboa: Estampa, 1989. p. 75-76.
[87] Os especialistas tendem a elaborar interpretações a partir da solução de Platão ao estabelecer Formas relativas na sua ontologia. Como exemplo disso, expomos aqui a interpretação de Cordero ao afirmar que o não-ser não se constitui como ‘coisa em si’, pois não concordamos com a posição do comentador em relação a este ponto específico. Cordero diz: ‘O entusiasmo de Platão excede sua solução. Da relação recíproca dos gêneros, Platão tirou como conseqüência que o não-ser, em relação a cada Forma, é o que ela não é. [...] Contudo, em todos os casos, o não-ser foi definido em relação a alguma coisa. Trata-se inteiramente de um não-ser, mas relativo: não-ser é não-ser-X. [...] Desde que se suprima X, o não-ser desaparece. Não há, apesar do que Platão disse um não-ser em si. É seu entusiasmo que o tem talvez enganado, mas de seus exemplos, de seu caminho e de seu método, nós não podemos tirar esta conclusão’. Se ‘desde que se suprima X, o não-ser desaparece’ e, então, ‘não há, apesar do que Platão disse, um não-ser em si’, suprimindo X estaríamos suprimindo as partes do Outro dentro da estrutura ontológica, elas só ‘existiriam’ a partir de uma relação feita no intelecto e através do logos. Mas como poderíamos fazer uma relação a partir de uma espécie de ‘nada’ ou de um ‘nada’ que estaria em contínuo vir-a-ser alguma coisa para que tais relações pudessem ser feitas? Seria preciso substituir o então provisório não-ser-suprimido por outra coisa, que seria um ‘nada’ perdido dentro de uma estrutura ontológica. Cordero esquece a passagem em que logo após a definição de não-ser (Sof. 257c) Platão diz: 'Logo, o não-justo deve colocar-se, também, na mesma medida que o justo, na medida em que, de maneira alguma, um não é mais ser que o outro. [...] O mesmo se dirá de todo o resto, pois que a natureza do outro, pelo que vimos, se inclui entre todos os seres; e se ela é, é necessário considerar as suas partes como seres pela mesma razão que o que quer que seja. [...] Assim, ao que parece, quando uma parte da natureza do outro e uma parte da natureza do ser se opõem mutuamente, esta oposição não é, se assim podemos dizer, menos ser que o próprio ser; pois não é o contrário do ser o que ela exprime; e sim, simplesmente, algo dele diferente (Sof. 258 a — 258b). Cordero também parece colocar de lado o fato de que Platão estabeleceu a realidade do não-ser como Forma que constitui o Outro, como uma Forma poderia às vezes ser e às vezes não ser uma ‘Forma’? — ainda que derivada ou ‘dividida’ — tendo em vista que possui existência ontológica? O especialista ainda diz: se a ‘negação [é] suprimida, a divisão não existe mais.’ A divisão não existir mais em relação a alguma coisa, não significa necessariamente que as suas partes não existam, mas que apenas não participam ou não estão presentes no sensível em todos os seres e em todos os lugares por todos os momentos, mas por certo estão presentes em algum ser em um dado momento. Além disso, se aceitássemos o raciocínio do Cordero teríamos que derivar para: aquilo que não tem sua participação no sensível significa que da forma X ela passou para um estado de ‘nada’. Depois, uma coisa é o não-ser depender de uma relação para poder ser dito, pronunciado, pensado, outra é pensar que se não há pensamento e discurso sobre algo determinado afirmar que esta forma: não-x não exista, pois ela pode não ‘estar’ no pensamento do filósofo, por exemplo, e estar no pensamento do ‘sofista’_ em algum lugar do sensível ela provavelmente terá sua presença e se seguirmos nesse raciocínio do Cordero teríamos que aceitar que existe ou uma regressão de formas ao infinito para cada intelecto: um Ser, um Repouso, um Movimento, um Outro e um Mesmo ‘personalizado’ para cada homem, e multiplicado ao infinito; ou, de outro lado, retornar ao problema de Parmênides só que em vez de absolutizar o ser, o faz com o não-ser na medida em que ele parece tomar como ponto de partida, no que se refere a sua afirmação, exclusivamente ‘um intelecto’, se para ‘este intelecto determinado’ não cabe a forma do não-justo em dado momento e lugar, então ele desaparece, não existe. Seria uma maneira de colocar o não-ser como algo absoluto em função de que ele parece excluir a multiplicidade de ‘pensamentos’ que existem em inúmeros seres. Estabelece um limite que não poderia ser ‘justificado’ se pensarmos na multiplicidade de seres que pensam. Como poderia não existir uma das partes do não-ser em momento algum em nenhum pensamento ou coisa sensível? Nesse aspecto, se o ser é tão ser quanto o não-ser [e este, segundo Platão, são as partes do Outro] é necessário que existam as «subformas» que pertencem ao Outro, sua essência deve existir ainda que não seja dirigida a todos os seres, pois nem todos terão a mesma participação das partes da Forma Outro, em todos os momentos e em todos os seus pensamentos, pois isso igualaria o discurso tornando tudo que é pensado e dito o «mesmo». Enfim, pensamos que o não-ser não fazer parte de um Ser específico não significa ‘desaparecimento’ entre os gêneros supremos, pois não existe somente um ‘ser’, mas múltiplos. Analisando de outra maneira, Cordero parece cair no mesmo problema de Parmênides e de uma certa maneira trabalhar com algo que chega perto do ‘absoluto’. O que ele afirma absolutizaria, em certo sentido, o não-ser. Nega a multiplicidade dos seres se apoiando em uma afirmação que só faz sentido se o intelecto para o qual ele direciona tal negação do não-ser
em si, suprimido-o, fosse tão e exclusivamente de um único intelecto. Mas não existe um, existe uma multiplicidade de seres que pensam_ e existem as Formas, universais. Assim, nossa posição é a de que o não-ser como parte constitutiva da Forma Outro é uma coisa em si tanto quanto os outros gêneros supremos estabelecidos no Sofista. Cf. Cordero. Introduction. In: Platon. Le Sophiste..., 1993, p. 64-65.
[88] A natureza do Outro divide-se do mesmo modo que a ciência. Fica implícito aqui a diairesis como método de divisão das Formas entre si mesmas, há, portanto, uma diairesis que perpassa a Forma do Outro constituindo suas partes. No Sofista, Platão fornece três exemplos: não-grande, não-belo e não-justo, mas só este último é um exemplo de partes do Outro que se constitui em uma Forma abstrata de valor.
[89]Platão parece ligar o termo «não-seres» ao discurso falso e não o termo «não-ser», pois faz referência duas vezes a Parmênides com a mesma passagem: ‘Jamais obrigarás os não-seres a ser’ (Sof. 237b e 258d), nesta última referência, Platão diz: ‘Não nos contentamos apenas em demonstrar que os não-seres são, mas fizemos ver em que consiste a forma do não-ser’ (Sof. 258d), disso decorre que se interpretamos «não-seres» como o mesmo que «não-ser» teríamos que admitir que Platão inclui os sofistas e a falsidade diretamente na estrutura ontológica, coisa que seria um contra-senso, consideramos então que os «não-seres» se referem às coisas que não são, em outras palavras, às imagens criadas pelos sofistas, os não-seres se ligam às cópias, àquilo que as coisas não são em seu real realíssimo — as Formas em si mesmas — o não-ser é que é parte de um dos gêneros supremos. Em nenhuma parte do diálogo Platão se refere ao não-ser no plural quando está tratando dos gêneros supremos.
[90] Agradeço ao Doutorando Nazareno de Almeida, por ter me chamado a atenção para este segundo termo utilizado por Platão no Sofista: allós, por meio do qual foi possível a seguinte pergunta: por que razão Platão utilizaria dois termos para a forma do Outro? — o que resultou nas derivações deste subcapítulo.
[91] No Lexique de la langue philosophique et religieuse de Platon o termo «allós» é definido como 'outro que não as Formas'. Cf. Platon. Oeuvres Complètes: Lexique de la langue philosophique et religieuse de Platon. Paris: Les Belles Lettres, 1970. p. 30. Agradeço ao Prof. Dr. Eduardo Luft por ter me chamado a atenção para este ponto sugerindo que seria importante conferir todo o diálogo Sofista com a finalidade de examinar se Platão realmente teria usado sistematicamente a diferença entre os dois termos utilizados como «outro», para só após chegar realmente a concluir que heteron se refere à Forma em si mesma (Outro) e allós a outro que não as Formas.
[92] Isto gera um outro problema: a condição de possibilidade permite ainda que as Formas sejam perfeitas, eternas e imutáveis? Isto toca diretamente numa questão extremamente controversa entre os especialistas: após o Sofista é ainda possível uma teoria das idéias? Platão realmente teve uma teoria das idéias? Para responder a pergunta colocada inicialmente seria necessário um estudo sobre a teoria das idéias após o Sofista, no momento podemos unicamente dizer que, a princípio, a «condição de possibilidade» é dada pelas Formas enquanto relativas, já que existe Movimento entre as Formas através da participação, isto é, através da existência ou da realidade do Mesmo e do Outro, do Repouso e do Movimento, é que se pode ‘tomar o outro pelo mesmo e o mesmo pelo outro’, assim, embora as Formas em si mesmas não constituam a falsidade a «condição de possibilidade» se daria pela inversão do Mesmo e do Outro — no pensamento — originando a falsidade, mas isso não se refere mais às Formas em si mesmas na estrutura ontológica e sim elas "agindo" no pensamento do sofista, por exemplo, que todavia está no sensível e não lá entre as Formas. O Outro é que dá condições para a multiplicidade/diversidade dos seres, mas é pela sua apreensão "equivocada" que tal condição de possibilidade se torna possível enquanto falsidade. Por outro lado, é pela apreensão correta que o discurso do filósofo também é possível como verdadeiro. Não exclui que as Formas sejam perfeitas — pois embora a participação, todas são perfeitas — e eternas; quanto à imutabilidade, num certo sentido são imutáveis porque conservam sua Mesmidade ou Identidade, num certo sentido não são imutáveis, em termos do Movimento, por causa da participação estabelecida entre elas e delas para o sensível. A imutabilidade, a princípio, excluiria o Movimento, talvez pudéssemos falar em uma imutabilidade quanto à «essência» que cada Forma conserva de si própria — como uma «parte» de cada gênero supremo, parte esta que não conteria mudança, pois caso contrário, elas sequer permaneceriam como tais, por exemplo, o Movimento «é» ele mesmo e nenhuma das outras Formas.
[93] EDUARDO LUFT (eluft@zaz.com.br) Re: Não-ser. 15 ago. 2002. Enviado às 11h07min. Mensagem para: Sandra Adriana Fasolo (sandra_fasolo@yahoo.com.br).
[94] Esta distinção entre a symploké do não-ser como forma suprema — que possibilita o discurso verdadeiro — e o não-ser que acaba se voltando para o discurso falso, já pode ser vislumbrada no Sofista 240b, que comentaremos um pouco mais à frente no texto.
[95] MARCELO PIMENTA MARQUES (marquess@dedalus.lcc.ufmg.br.) Re: Parmênides e Platão. 17 nov. 2002. Enviado às 13h26min. Mensagem para: Sandra Adriana Fasolo (s.fasolo@terra.com.br).
[96] Seria extremamente importante abordarmos a questão da dynamis e da linguagem a partir do Sofista, contudo, ultrapassa ao que nos propomos aqui, então, apenas colocamos brevemente o principal problema no que se refere à linguagem e uma possível explicação. Em Platão seria difícil aceitar que o logos pudesse vir a ser algo que ao menos não se encontra entre as Formas como um ‘elemento inteligível’ dada a importância do pensamento (‘da alma consigo própria ou do pensamento exteriorizado’, os quais possuem uma relação direta com a ciência suprema e universal: a dialética. E como isto recai sobre o particular — é sempre um ser individual que pensa e exterioriza o seu pensamento — a questão colocada é: como Platão não estabelece a linguagem como uma das Formas supremas, ele apenas a usa como exemplo de diairesis no Sofista provavelmente com vistas à dialética, como é possível que a linguagem seja ou esteja entre os elementos do inteligível sem ser ela própria uma das Formas? A questão da correspondência entre o nome e a coisa, entre o logos e a realidade traz implícita o eidos. O problema, como explica Marques, é que não há uma Forma para o nome e então a explicação possível deve ser desenvolvida a partir de uma ‘relação’ que inclui sempre a alteridade, poderíamos dizer, inclui necessariamente a Forma do Outro estabelecida no Sofista, pois Platão não aceita nenhuma das suas teses expostas no Crátilo: essencialista e convencionalista. A compreensão do problema se dá, então, a partir do Sofista: o Outro possibilitaria a relação entre o nome e a coisa a partir da idéia de que o nome é o Mesmo, enquanto ele próprio, mas é Outro que a coisa nomeada e Outro ainda quando da união com ela_ haveria assim uma tripla participação do Outro no processo de significação e correspondência do nome à coisa sensível. O objeto é o Mesmo enquanto ele próprio em seu ser particular, mas Outro que o nome, e Outro ainda a partir da união dada por tal relação ontológica-sensível, possibilitando assim a significação do nome à coisa no dizer verdadeiro, na justeza do nome. Ao contrário, quando se une um nome e um objeto partindo de Outro que ele mesmo o discurso falso toma o lugar do verdadeiro. É aquilo que Platão diz no Sofista: o discurso falso é quando se diz aquilo que não é, este ‘não-é’ compreendido não como a Forma do Outro-Não-ser, mas como tendo sido estabelecido a partir mesmo de um Outro que não corresponda à symploké dando origem ao não- verdadeiro, falso, portanto. Nesse ponto a figura do legislador ou do dialético tem papel ímpar, pois eles desejam a verdade ou a justeza dos nomes e assim o contemplar possibilita uma maior aproximação dessa justeza com o pensamento e a symploké entre as Formas supremas. Pode-se até mesmo pressupor que o discurso falso teria seu início na menor unidade do logos — o logos é mais amplo que um nome apenas, deve ser visto como discurso articulado e não somente como um nome isolado — a partir do qual dada a falsidade da relação entre o nome e o objeto, entre um simples nome, como se poderia esperar que o discurso — ou o diálogo da alma consigo mesma ou exteriorizada — pudesse vir a ser um discurso verdadeiro se o pensamento já parte, em sua menor unidade, de uma falsa relação ou correspondência? Canto, pergunta ‘o que é então essa forma do nome que tira seu ser da relação do nome com a coisa?' Ela define a essência do nome, enquanto se 'relaciona' a um ser. Quando Canto diz: tira seu ser, está falando da significação ou significado atribuído ao nome em questão. Mais à frente ela fará referência ao legislador-demiurgo (Crat.389 a) o que retorna o problema novamente para a ontologia platônica. Contudo não se pode passar por cima do que o próprio Platão escreveu nos diálogos e assim, o mínimo que se pode dizer é que não se pode dizer que existe uma Forma específica para a linguagem, ao menos não entre os gêneros supremos estabelecidos no Sofista e que a compreensão deve passar por um pensamento que pense a relação de alteridade (Outro-Não-ser) entre as coisas e as palavras com vistas a uma relação entre as ‘coisas’ e a justeza dos nomes que, por sua vez, conduzem ao discurso articulado. Para estas análises ver o artigo de Monique Canto e um capítulo da Tese de Marcelo Marques. Cf. Canto, M. Le premier nom du signe. Le sémeion dans la pensée platonicienne. Actes du Colloque de Cerisy. Dir. Petito, J. Ed. Patino, 1988, p.497-509. Marques, M. Le discours: liaisons, altérité, fausseté. L’autre et les autres: a propos de l’altérité dans le Sophiste de Platon..., p. 316-339.

[97] Cf. Vaz, Ontologia e história..., 1968, p. 57.
[98] 'Platão não condena o uso da antilogia em si, mas sua utilização abusiva e sobretudo fora de uma perspectiva dialética maior. De fato, ele não poderia simplesmente negar a validade de um procedimento consagrado na prática por Sócrates. A antilogia aproxima-se muito do élenkhos socrático, tal como ele é retomado por Platão nos diálogos: partir da resposta inicial do interlocutor e levá-lo pouco a pouco a aceitar afirmações que se opõem diretamente à afirmação inicial, chegando a um ponto no qual ele é obrigado a negá-la, criando assim uma situação tipicamente antilógica, na qual duas teses contraditórias são postas uma em frente a outra.' Cf. Marques. O sofista: uma fabricação platônica? Kriterion, Belo Horizonte, n.102, p.84,
2000.
[99] Cf. Paviani, J. Filosofia e método em Platão..., 2001, p. 188.
[100] * Os termos com asterisco correspondem às definições do glossário pertencente à obra de Jayme Paviani. Cf. Paviani, J. Terminologia. In: Filosofia e método em Platão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, p.252-256.
[101] Cf. o respectivo verbete em Ferrater Mora, J. Dicionário de filosofia. p. 858.
[102] Cf. Reale, G. História da filosofia antiga: a teoria das idéias. p 63.
[103] Cf. VAZ, Lima. Ontologia e história..., 1968, p. 22.
[104] Tabela elaborada a partir da estrutura estabelecida por A. Diès. Cf. Platon. Ouvres Completes, Tome VIII, 3 ª partie. Paris: Société D’Edition ‘Les Belles Lettres’, 1950. Texte établi et traduit par Auguste Diès. a E estrutura estabelecida por J. Paleikat é exatamente igual à da edição francesa. Cf. Platão. Sofista. In: Diálogos. São Paulo: Abril Cultural, 1983. Coleção Os Pensadores. Tradução de J. Paleikat e J. C. Costa.
[105]Após o Estrangeiro ter sido apresentado a Sócrates, o diálogo seguirá com a discussão filosófica, com o próprio hóspede de Eléia, perguntando sobre quem seja o sofista (Sof. 216a — 218b) ou antes: de que maneira o sofista e o político podem se distinguir do filósofo — se é que se distinguem? (216d) Depois da introdução e das duas partes seguintes: O diálogo entre o Estrangeiro e Teeteto: definição do sofista (218c —221c) e A aplicação do método na definição dos sofistas (221d — 222a) Platão fará um série de divisões para analisar a arte da sofística. Depois da série de divisões (222a — 237a) sobre a definição do sofista, Diès destaca onde inicia realmente O problema do erro e a questão do não-ser: 237a — 259d. Após segue com A possibilidade da falsidade no discurso e na opinião (260a — 264b). O diálogo terminará numa revisão das definições através da aplicação da realidade do não-ser à possibilidade do erro e do discurso, na opinião e na imaginação a partir da reformulação da tese de Parmênides. Platão demonstrará por meio da argumentação de uma nova estrutura ontológica, onde introduz o não-ser relativo e a combinação das Formas supremas, que os sofistas possuem uma arte essencialmente de ilusão, o sofista é um possuidor da arte de imitação ou mimética (264c — 268d) — fim do Diálogo Sofista.
[106] Tabela elaborada a partir do esquema do especialista no pensamento de Platão, N. L. Cordero. Introduction. In: Platon. Le Sophiste (Texte Intégral) Traduction inédite, introduction e notas por Nestor L. Cordero Paris: GF Flammarion, 1993, p. 64-65. [107] Tabela anexada à Tese de Doutorado do Prof. Dr. Marcelo Pimenta Marques. L’autre et les autres: a propos de l’altérité dans le Sophiste de Platon. França: Universite de Sciences Humaines de Strasbourg, 1997, p. 430.

[108] Tabela elaborada a partir da estrutura estabelecida por J. Paleikat. Cf. Platão. Sofista. In: Diálogos. São Paulo: Abril Cultural, 1983. Coleção Os Pensadores. Tradução de J. Paleikat e J. C. Costa.
GLOSSÁRIO

Aporia* (sem saída, impasse) Indica dificuldade de raciocínio, de argumentação. A aporia pode ser real ou aparente. Seu sentido deriva etimologicamente de caminho impercorrível. Platão escreveu diálogos aporéticos, como o Lísis, nos quais os problemas examinados permanecem sem conclusão.
Arte da sofística_ a técnica própria aos sofistas, no diálogo Sofista, Platão faz seis tentativas de definição dos sofistas, em cada uma delas ele aborda características próprias à arte sofística, como por exemplo, a antilogia, ‘recurso discursivo que sustenta ao mesmo tempo a tese e a antítese com o objetivo de combater qualquer posição do adversário. Protágoras escreveu um livro com o título Antilogia. O método antilógico é [100]próprio da sofística (Sof. 232b)*.’
Cópia_ um segundo objeto, no sensível, que não o verdadeiro; por verdadeiro entenda-se o «real realíssimo das idéias».
Coisas_ ‘todas as coisas’_ tudo que existe, qualquer ser.
Diairesis_ Divisão. É um momento central do processo dialético. É o procedimento da divisão adotado para definir e classificar, em que se procura dividir em dois ou no modo mais próximo ao dois, para alcançar a idéia, cujo estatuto ontológico a torna independente dos erros lingüísticos e humanos de explicação ou interpretação. O processo diairético é usado para alcançar a definição de um termo, por exemplo, o sofista e o político. Serve, igualmente, para mostrar a complexidade e a estrutura de uma idéia.
Dialética (Dialektiké)* A dialética realiza-se, em Platão, de modo específico em cada diálogo, onde são adotados procedimentos em vista a solução de um problema filosófico. É ao mesmo tempo técnica e ciência, isto é, filosofia. O processo dialético em geral individualiza a estrutura da idéia que funda a realidade, examinando com o máximo de atenção os termos, os graus de conhecimento, os gêneros supremos. O processo em geral compreende os momentos sinótico e diairético. No primeiro, repõe-se a multiplicidade das coisas numa única idéia. No segundo, procede-se à divisão da idéia para determinar o quanto ainda é necessário até alcançar a idéia em si.
Discurso_ No Sofista, Platão fornece uma definição de «discurso»: o pensamento da alma consigo mesma e o pensamento exteriorizado em som. O discurso pode ser verdadeiro ou falso; verdadeiro quando se trata do dom dialético da ciência suprema (filosofia) para alcançar às Formas; falso, como no caso dos sofista que não possuem o dom dialético e sim são «fabricantes de falsas imagens» que no plano do discurso significa, falsas idéias, distantes, portanto, das Formas.
Doxa (opinião) Modalidade de conhecimento considerado inferior ou pseudo-conhecimento na perspectiva platônica. Contrapõe-se ao conhecimento da episteme, da ciência.
Erístico[101]_­­ (de éris, controvérsia, de onde deriva eristkos, relativo à controvérsia. A erística tem relação com a sofística, pois o termo ‘erístico’, assumiu um sentido pejorativo de discussão dialética [diferenciada, portanto, da de Platão] quando a discussão tem por fim a própria discussão, nesse sentido, segundo Ferrater Mora, a erística degenera-se em sofística e a interpretação do método erístico dá lugar a juízos desfavoráveis. Isso ocorreu com a escola de Megara. Seu fundador, Euclides, rejeitava a sensação e a opinião derivada das sensações conduzindo-o a basear-se unicamente na razão e a construir argumentos semelhantes aos dos eleatas, que de modo algum são considerados sofísticos. Apenas quando Euclides se comprazia em confundir os opositores, o aspecto negativo da erística predominava sobre o positivo. O abuso da argumentação pela mera argumentação em que pareceram comprazer-se alguns dos megáricos contribuiu para que a erística fosse definida como um imoderado apetite de triunfar sobre o adversário passando por cima das exigências da verdade. Esse é o sentido que a erística ainda tem na literatura filosófica como é também o mesmo sentido da sofística — ambas não levam em consideração o conteúdo da verdade e sim vencer através das argumentações.
Forma (eidos)[102]: segundo G. Reale, o vocábulo ‘Idéia’ é a tradução dos termos gregos idea e eidos, mas a tradução que se tornará estável na linguagem metafísica de Platão é o termo: Forma, significa a essência da coisa em si na estrutura metafísica ou inteligível, o ser absolutamente verdadeiro. ‘As coisas que captamos com os olhos do corpo são formas físicas; as coisas que captamos com ‘o olho da alma’ são, ao contrário, formas não-físicas: o ver da inteligência capta formas inteligíveis que são, exatamente, essências puras. As Idéias são as essências eternas do bem, do verdadeiro, do belo, do justo e assim por diante, que a inteligência, quando se move na pura dimensão do inteligível, consegue ‘fixar’ ou ‘ver’.
Gêneros Supremos_ ou Formas Supremas. No Sofista Platão estabelece cinco Formas Supremas: Ser, Repouso, Movimento, Mesmo e Outro, são como princípios ontológicos que fundam todas as coisas que existem, tudo que é «real» para Platão.
Imagem_ aquilo que parece ter existência «real» na estrutura ontológica como elemento inteligível, mas contudo não possui tal existência. No Sofista, Platão acusa os sofistas de serem fabricantes de imagens, logo de coisas que não são «reais» ontologicamente.
Imitação_ uma cópia, uma reprodução a partir de algo que é verdadeiro, mas também a partir de algo que não é real e verdadeiro a partir do contemplar próprio das Formas.
Inteligível_ segundo Cordero, Platão no Sofista não fala mais em «mundo sensível» e «mundo inteligível», contudo mantém a idéia de elementos do inteligível os quais seriam as Formas.
Ontologia_ entendemos ontologia como ciência do ser que pretende, através, por exemplo, da estrutura ontológica descrita no Sofista, dar conta de «todas as coisas» da realidade sensível, por meio da qual pode-se apreender a verdade real das Formas, ainda que por partes — devido a participação das Formas no intelecto e na alma.
Real[103]_ ‘Para Platão o ‘real realíssimo’ são as Idéias.’
Sensível_ se opõe ao inteligível na medida em que o primeiro possui a presença das Formas (eidos) e participa delas por meio da estrutura ontológica dos elementos do inteligível, as Formas seriam a causa (aitia) do sensível.
Ser_ o conceito de Ser em Platão refere-se, a nosso ver, a «todas as coisas» que existem, contudo o conceito de ser é interpretado por pelos especialistas de diferentes maneiras, no Sofista, por exemplo, há uma discussão em torno deste conceito enquanto dynamis, poder de agir e sofrer que qualquer ser possui, alguns discordam desse conceito de ser em Platão.

LISTA DE TABELAS

TABELA 1
— Estrutura do Sofista por Auguste Diès —
Sofista[104]
Indicação
Estrutura do Diálogo Sofista[105]
216 a — 218 b
Teodoro, Sócrates, Estrangeiro de Eléia, Teeteto
218 c — 221 a
O diálogo entre o estrangeiro e Teeteto: a definição do sofista
221 c — 222 a
A aplicação do método na definição dos sofistas
222 b — 223 b
A primeira definição do sofista: caçador interesseiro de jovens ricos
223 c — 224 d
A segunda definição do sofista: o comerciante em ciências
224 e — 225 a
Terceira e quarta definições do sofista: pequeno comerciante de primeira ou de segunda-mão
225 a — 226 a
Quinta definição do sofista: erístico mercenário
226 a — 231 c
Sexta definição: o sofista, refutador
231 d — 233 a
Recapitulação das definições
233 b — 237 a
As artes ilusionistas: a mimética
237 a — 241 d
O problema do erro e a questão do não-ser
241 d — 242 b
Refutação à tese de Parmênides
242 c — 244 b
As teorias antigas do ser. As doutrinas pluralistas
244 b — 245 e
As doutrinas unitárias
246 a — 247 d
Materialistas e Amigos das Formas
247 e — 249 d
Uma definição do ser. Mobilistas e estáticos
249 e — 251 a
A irredutibilidade do ser ao movimento e ao repouso
251 b — 253 b
O problema da predicação e a comunidade dos gêneros
253 c — 254 a
A dialética e o filósofo
254 c — 256 d
Os gêneros supremos e suas relações mútuas
256 e — 258 c
Definição do não-ser como alteridade
258 d — 259 d
Recapitulação da argumentação sobre a realidade do não-ser
259 e — 264 b
Aplicação à questão do erro na opinião e no discurso
264 c — 268 d
Retorno à definição do sofista

TABELA 2
— Estrutura do Sofista por Nestor-Luis Cordero —
Sofista[106]

Indicação
Estrutura do Diálogo Sofista
216a — 218 b

Apresentação por Teodoro do Estrangeiro de Eléia. Escolha do assunto a tratar: a definição do sofista. O Estrangeiro propõe adotar o método interrogativo, praticado outrora por Parmênides. Escolha de Teeteto como interlocutor do Estrangeiro.

218b — 221 c

Aplicação do método a um assunto menos importante que o sofista: o pescador com anzol.

221c — 232ª
Aplicação do método com vista a definir o sofista. Obtenção das seis primeiras definições:
(1) caçador de jovens ricos para obter dinheiro (222a — 223b)
(2) traficante de conhecimentos próprios à alma (223b — 224 d)
(3) comerciante de conhecimentos (224d)
(4) fabricante de conhecimentos (224e)
(5) contraditor profissional (225a — 226a)
(6) purificador da alma (226a — 231c)
232a—237b.

Recapitulações das seis definições. Aprofundamento da definição do sofista a partir de seu papel de “contraditor”. Relação entre “contraditor” e “imitador”: elaboração de uma sétima definição: o sofista será um “mágico”. Aparição do problema do estatuto ontológico de imagem. Como a imagem não possui a realidade do modelo, ela supõe existência do não-ser. Essa afirmação vai de encontro da tese fundamental de Parmênides.
237b — 239 c
Colocado à prova o axioma de Parmênides segundo o qual o não-ser não existe. As tentativas para demonstrar que o não-ser existe. Impossibilidade de definir o sofista com um ilusionista que fabrica imagens.
239 d — 249d
Novo ponto de partida. A imagem mesma se ela não é tão real como o modelo, é uma imagem. Coexistência da imagem do ser e do não-ser: refutação da tese de Parmênides. Colocada à prova a idéia de “ser”. As aporias do ser: exame crítico das teorias pluralistas, monistas, materialistas e idealistas.
239d — 259d
Necessidade de uma nova concepção do ser, capaz de ultrapassar as aporias. O ser, potência de comunicação. Definição da dialética como ciência da relação recíproca entre as Formas. Definição do não-ser como “o que é diferente”. O não-ser não é o contrário do ser.
259d — 268d

Relação entre o não-ser e o discurso falso. O discurso falso diz uma coisa “diferente” do que é. Reprise da sétima definição do sofista. O sofista é um mágico [ilusionista, falsário] que produz ilusões [mentiras, enganos].

TABELA 3
— Estrutura do Sofista por Marcelo Pimenta Marques —
Sofista[107]

Indicação
Introdução
216A1 — 218B5
O Estrangeiro de Eléia
Diairesis
218B6 — 221C5
O método da divisão
221C6 — 223B7
A caça
223C1 — 224E5
O comércio
224E6 — 226A8
A luta
226B1 — 231B8
A purificação
Antilogia
231B9 — 233D2
A antilogia sofística
Mímesis
233D3 — 236D4
A produção mimética de imagens
Aporia
236D5 — 237B6
As aporias do não-ser
237B7 — 237E7
A primeira aporia do não-ser
238A1 — 238C2
A segunda aporia do não-ser
238D1 — 239C8
A terceira aporia do não-ser
239C9 — 240C6
A quarta aporia do não-ser
Eídolon
240C7 — 241C6
A quinta aporia do não-ser
Logos pseudés
241C7 — 243D5
As aporias do ser
243D6 — 244B5
A aporia da dualidade
244B6 — 245E5
As aporias da unidade
245E6 — 246A7
O Combate de Gigantes
246A8 — 248A3
A aporia dos Filhos da Terra
248A4 — 249D5
A aporia dos Amigos das Formas
Os grandes gêneros
249D6 — 251A4
A alteridade do Ser com relação ao Movimento e o Repouso
251A5 — 251D3
A questão dos nomes
251D4 — 252E8
Três possibilidades de comunicação
252E9 — 253B8
As letras e os sons
A dialética
253B9 — C3
Ciência das misturas e das divisões
253C4 — D4
Ciência dos homens livres
253D5 — 254B7
Ciência das Formas
254B8 — D3
Um programa de pesquisa
O Mesmo e o Outro
254D4 — 255B7
O Ser, o Movimento e o Repouso
255B8 — C8
A posição do Mesmo enquanto Forma
255C9 — E7
A posição do Outro enquanto Forma
255E8 — 256D10
O caso paradigmático do Movimento
O Outro
256D11 — 257A12
A ação do Outro
257B1 — C4
A negação
257C5 — 258A10
A natureza dividida do Outro
258A11 — 259B8
O não—ser
O sofista
259B9 — 259D8
A verdadeira refutação
259D9 — 264B10
O discurso e o discurso falso
264B11 — 268D5
O gênero do sofista

TABELA 4
— Estrutura do Sofista por Paleikat—
Sofista[108]

Indicação
Estrutura do Diálogo Sofista
216 a — 218 b
Teodoro, Sócrates, Estrangeiro de Eléia, Teeteto
218 c — 221 a
O diálogo entre o estrangeiro e Teeteto: a definição do sofista
221 c — 222 a
A aplicação do método na definição dos sofistas
222 b — 223 b
A primeira definição do sofista: caçador interesseiro de jovens ricos
223 c — 224 d
A segunda definição do sofista: o comerciante em ciências
224 e — 225 a
Terceira e quarta definições do sofista: pequeno comerciante de primeira ou de segunda-mão
225 a — 226 a
Quinta definição do sofista: erístico mercenário
226 a — 231 c
Sexta definição: o sofista, refutador
231 d — 233 a
Recapitulação das definições
233 b — 237 a
As artes ilusionistas: a mimética
237 a — 241 d
O problema do erro e a questão do não-ser
241 d — 242 b
Refutação à tese de Parmênides
242 c — 244 b
As teorias antigas do ser. As doutrinas pluralistas
244 b — 245 e
As doutrinas unitárias
246 a — 247 d
Materialistas e Amigos das Formas
247 e — 249 d
Uma definição do ser. Mobilistas e estáticos
249 e — 251 a
A irredutibilidade do ser ao movimento e ao repouso
251 b — 253 b
O problema da predicação e a comunidade dos gêneros
253 c — 254 a
A dialética e o filósofo
254 c — 256 d
Os gêneros supremos e suas relações mútuas
256 e — 258 c
Definição do não-ser como alteridade
258 d — 259 d
Recapitulação da argumentação sobre a realidade do não-ser
259 e — 264 b
Aplicação à questão do erro na opinião e no discurso
264 c — 268 d
Retorno à definição do sofista

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

OBRAS DE PLATÃO
PLATON. Oeuvres Complètes: Sophiste. Texte établi et traduit par Auguste Diès. Tome VIII. Paris: Société D’Edition ‘Les Belles Lettres’, 1950.

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[1] Ressaltamos a tendência que os comentadores possuem, em sua maioria, em dizer: 'o não-ser é Outro', não levando em consideração a passagem onde Platão diz claramente: o não-ser é parte constituinte da natureza do Outro. A nosso ver, isto muda a definição, pois, neste caso, o não-ser não é o Outro, pois o Outro como Forma suprema é que possui partes que acabam por constitui-lo, estas partes são as partes do não-ser.
[1] A maior parte dos comentaristas situa o Sofista após o Teeteto e antes do Político. Está entre os diálogos ditos metafísico: Parmênides, Teeteto, Sofista, Político. Segundo D. Ross este grupo de diálogos revela um interesse pelo eleatismo que, anteriormente a eles, esteve ausente. No entanto, Platão não havia se convertido ao eleatismo, estava completamente de acordo em que a razão é fidedigna e os sentidos não o são, mas encontrou inteiramente insatisfatória a doutrina de que não existe mais que uma realidade única e um uno imutável. Cf. Ross, David. Teoría de las ideas de Platón. p. 103.
[1] Embora muito distante do que seria a oralidade do próprio Platão. No entanto, o texto desenvolvido nesta pesquisa não fará uma abordagem na linha das Doutrinas Não-Escritas, será mantido em linhas de interpretação da tradição clássica da filosofia platônica.
[1] Estas seis definições podem ser observadas através das tabelas constantes no anexo no final do trabalho, a sétima e última definição abrange a passagem final do diálogo: o retorno à definição do sofista (264c— 268d).
[1] Após as seis tentativas de definições Platão faz uma recapitulação de todas elas, surgirá então, na seqüência do texto, a questão do não-ser ligada ao discurso falso.
[1] Vaz, H.L. Ontologia e História. São Paulo: Duas Cidades, 1968, p. 21.
[1] Diès, A. Notice sur Théétete. In: Platon. Théétete. Texte établi et traduit par A. Diès. C.U.F. Paris: Les Belles Lettres, 1925, p. 141.
[1] Não concordamos com a análise dessa citação de A. Diès sobre o uso do poema de Parmênides pelos sofistas, por isso, no primeiro capítulo discorremos sobre a contradição existente neste ponto em relação aos sofistas.
[1] Nos permitimos não discorrer na introdução sobre as questões que envolvem a pergunta, nosso objeto de pesquisa, pois isto está desenvolvido no primeiro capítulo do texto.
[1] ‘Entendemos a ciência dialética como a ciência discursiva das Idéias. A Idéia [Forma] é o inteligível puro, ao qual compete, por essência, a existência objetiva. Cf. Vaz, H.L. Ontologia e história..., 1968, p. 15.
[1] Praticamente todo o material bibliográfico dos especialistas franceses nos foi cedido de forma extremamente generosa pelo Professor Doutor Marcelo Pimenta Marques da UFMG-FAFICH, especialista no pensamento de Parmênides e Platão. Agradecemos igualmente o acesso a sua tese de doutorado, realizada na Universidade de Strasbourg, intitulada: L’autre et les autres: a propos de l’alterité dans le Sophiste de Platon.
[1] Marques, Marcelo. O caminho poético de Parmênides. São Paulo: Loyola, 1990, p. 13.
[1] No seu texto L´histoire du texte de Parménide, Cordero diz que o poema vem a ser ‘uma série de fragmentos de um poema com aspectos filosóficos atribuído desde a antiguidade a Parmênides [...]’. E pergunta: ‘Todos esses fragmentos pertencem a uma única obra? Encontramos no interior desses fragmentos o núcleo central do pensamento de Parmênides? Jamais teremos completa certeza. Além disso, e como complicação suplementar, Platão faz alusão ao ensino « em prosa » de Parmênides (Sofista 237a). Este ensino era oral ou escrito? Nós não o podemos saber. Há uma única realidade: uma certa quantidade de versos — agrupados ou isolados — escritos no final do século V [a.C.] por Parmênides, a partir dos quais, em um dado momento, os eruditos têm tentado reconstituir o « poema » original. Cf. Cordero, N.L. L´histoire du texte de Parménide. In: Aubenque, P. (Dir.) Études sur Parménide: problèmes d’interpretation. tome II. Paris: Vrin, 1987, p. 3-4.
[1] Lembramos através de O’brien que ‘o texto do poema, como se sabe, não é atestado pela tradição direta; somente foi conservado nos manuscritos de vários autores antigos que o citaram através de extratos.’ Cf. O’brien, D. Problèmes d’établissement du texte. In: Aubenque, P. Études sur Parménide: problèmes d’interpretation. Tome II. Paris: Vrin, 1987, p. 314.
[1] Cf. Cordero. L´histoire du texte de Parménide..., 1987, p. 3.
[1] Cf. Cordero, N. op.cit., p. 3.
[1] Os comentaristas interpretam o poema de maneira bastante diferenciada, principalmente em função das traduções. O’Brien, por exemplo, diz que em relação ao ‘ser’ de Parmênides existem as seguintes traduções:
duas pronominais, uma epistêmica e duas ontológicas, dependendo da escolhida se possui um tipo de compreensão do que seja o ‘ser parmenídico’. Buscar compreender a Verdade, apresentada ao Jovem através dos ensinamentos da Deusa, realizando uma relação com a presença ou ausência do sujeito ao referir-se ao ‘ser’, é questão, segundo O’Brien, extremamente diversa entre os trabalhos filológicos apresentados pelos especialistas. Cf. O’brien, D. Le non-être.Deux études sur le Sophiste de Platon. Sankt Augustin: Academia Verlag, 1995, p. 5-9.
[1] ‘A cronologia de Parmênides varia entre 535-510 a.C. para o nascimento e 465-440 a.C. para sua morte, tal como pode ser atestado entre os diversos comentadores.’ Cf. Marques, M. P. O caminho poético de Parmênides... , 1990, p. 13.
[1] Pierre Aubenque, citado por Marques, cf. op.cit., p. 13.
[1] Marques destaca que ‘é realmente inegável que uma viagem ao céu, partindo do domínio da Noite para o da Luz, onde mora a deusa, evoca diversas experiências místico-religiosas da época: xamanísticas, órficas ou pitagóricas, mas é difícil determinar a que ponto Parmênides se filiava a uma ou outra destas correntes. Uma coisa é evidente: a atmosfera que seu pensamento respira é impregnada de religiosidade.’ Cf. Marques, M. op.cit., p. 44.
[1] ‘Há em Parmênides uma herança marcada fortemente por Hesíodo, sendo que ‘Couloubaritsis destaca Hesíodo como fonte principal de Parmênides’. Cf. Marques, M. op.cit., p. 22.
[1]O Poema de Parmênides é uma epopéia filosófica: «Odisséia espiritual», essa pesquisa cognitiva, ameaçada pela errância, de um ser excepcionalmente guiado pelo divino.’ Cf. Cassin, B. Le chant des sirènes dans le poéme de Parménide. In: Aubenque, P. (Dir.) Études sur Parménide: problèmes d’interpretation. Tome II. Paris: Vrin, 1987, p. 163.
[1] Cf. Marques, M. O caminho poético de Parmênides..., 1990, p. 35-36.
[1] Kirk, G.S.; Raven, J.E.; Schofield, M. Os filósofos pré-socráticos. Trad. Carlos Alberto Louro Fonseca, Beatriz Rodrigues Barbosa, Maria Adelaide Pegado. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, 1994, p. 253.
[1] Cf. Kirk-Raven..., op.cit., p. 254.
[1] Cf. Marques, M. O caminho poético de Parmênides..., 1990, p. 51.
[1] Cf. Kirk-Raven-Schofield. Os filósofos pré-socráticos..., 1994, p. 255.
[1] Cf. K Kirk-Raven-Schofield. op.cit., 1994, p. 260.
[1] Cf. Souza, J. C. Os pré-socráticos..., 1991, p. 79-80.
[1] Cf. esta exposição completa sobre a interpretação de O’Brien em sua obra Le non-être...,1995, p. 4-9.


[1] Cf. O’brien, D. Le non-être..., 1995, p. 4-9.
[1] Marques coloca que ‘a discussão dos sentidos do verbo ser se articula com a questão do seu sujeito, que gera ainda maiores e mais complexas discussões’. Além disso, concorda com a posição de Couloubaritsis que opta sempre pela polissemia do verbo ‘ser’, pois há um movimento próprio no poema que permite distinguir variações de significações. Cf. Marques, M. O caminho poético de Parmênides..., 1990, p.59. Pensamos que essa leitura do poema tende a resolver questões contraditórias quando é realizada sem o diferencial polissêmico. Por exemplo, tomemos a questão da negação da existência do não-ser e a afirmação da via da doxa como pura ilusão do mundo sensível, uma interpretação que não leve em consideração a polissemia do verbo acaba gerando contradição, pois então Parmênides estaria proibindo ao mesmo tempo: um caminho que existe — o não-ser — mas que é o mundo da doxa ou sensível — conclusão: a vida deveria ser evitada, com exceção do pensamento, mas como este pensamento poderia ser efetivado sem a própria vida? A polissemia tende a resolver esses problemas, contudo é difícil crer que Parmênides iniciando um pensamento sobre o ser pudesse já ter consciência de todas essas questões.


[1] Cf. Marques, M. op.cit., 1990, p. 46.
[1] ‘Todo o prólogo é permeado por imagens de mediação. O tema da ‘viagem’ já carrega em si mesmo um sentido de transição [...]’ além disso, ‘as diversas figuras divinas presentes no prólogo e no resto do poema, as Heliádes [jovens moças filhas do Sol que conduzem o carro que transporta o Jovem na viagem ao em direção à divindade] Díke, Anánke, Alétheia, Moîra, não seriam mais do que os diversos nomes de uma mesma divindade que se manifesta de diversas formas.’ Cf. Marques, M. op.cit., p. 46-48.

[1] Cf. Cornford, F. M. La teoria platonica del conocimiento. Buenos Aires: Paidos, 1983, p. 201.
[1] ‘1. Aristóteles, Metafísica, I, 5.986 b 18 (DK 28 A 24) Parmênides parece estar vinculado à unidade [...] Julgando que fora do ser o não-ser nada é, forçosamente admite que só uma coisa é, a saber, o ser, nenhuma outra... Mas constrangido a seguir o real (tois phainoménois), admitindo ao mesmo tempo a unidade formal e a pluralidade sensível, estabelece duas causas e dois princípios: quente e frio, vale dizer, Fogo e Terra. Destes (dois princípios) ele ordena um (o quente) ao ser, o outro ao não-ser. —Id., ibid., III, 5. 1010 a1: examinado a verdade nos seres, como seres admitia só as coisas sensíveis.’ Em outra passagem diz Aristóteles: ‘uns negam absolutamente geração e corrupção, pois nenhum dos seres nasce ou perece, a não ser em aparência para nós. Tal é a doutrina da escola de Melisso e Parmênides, doutrina que, por excelente que seja, não pode ser fundada sobre a natureza das coisas. Pois, se existem seres engendrados e absolutamente imóveis, pertencem mais à ciência outra que não à da natureza, e anterior a ela. Mas estes (filósofos), ao conceberem a existência apenas para a substância das coisas sensíveis, crendo plenamente nisso, e os primeiros naquilo, i. e., que sem tais naturezas imóveis não pode haver nem conhecimento nem sabedoria, não faziam mais que transferir aos seres sensíveis as razões só válidas para as realidades. — Id., Da Geração e Corrupção I, *.325 a 13: Partindo desses raciocínios, deixando de lado o testemunho dos sentidos e negligenciando-o sob o pretexto de que se deve seguir a razão, alguns pensadores ensinam que o todo é um, imóvel e ilimitado; pois o limite só poderia limitar em relação ao vazio. Tais são as causas pelas quais esses (pensadores) desenvolveram as teorias sobre a verdade. Certamente, segundo este raciocínio, parece suceder assim com estas coisas: mas, se se tomam em conta fatos, semelhante opinião parece-se uma loucura.’ Cf. Os pré-socráticos: fragmentos, doxografia e comentários. Trad. J. C. de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p. 77. Assim, Aristóteles parece criticar o ser absoluto de Parmênides no mesmo sentido em que o tentamos explicar: como pode sendo uno ser também múltiplo sem perder sua unidade e, na multiplicidade evidente do sensível, como poderia ainda pretender encontrar a ‘verdade’ oriunda do ‘ser’ em um ‘mundo’ que não reflete aquele do ‘ser’?
[1]Nietzsche comenta sobre isso também, mas sem desmerecer o fato de que Parmênides teria em sua filosofia o prelúdio do tema da ontologia, diz ele: ‘No fim da sua vida, provavelmente, Parmênides teve um momento da mais pura abstração, [...] cujo produto é a teoria do ser. [...] Mas ninguém se engana impunemente com as abstrações tão terríveis como são o ser e o não-ser’ [...] O pensamento e aquele ser modular e esférico, completamente morto e maçiço. imóvel e imutável, precisavam, segundo o imperativo de Parmênides e para o terror da imaginação, coincidir e ser totalmente um e mesmo. Esta identidade pode contradizer os sentidos! [...] No restante, poder-se-ia apresentar contra Parmênides poderosos argumentos [...] através dos quais não viria à luz a verdade, mas sim a inverdade daquela separação entre mundo dos sentidos e mundo dos conceitos e daquela identidade entre ser e pensar. Primeiramente, se é real o pensamento da razão por conceitos, então a multiplicidade e o movimento também precisam ter realidade, pois o pensamento racional é móvel, é em verdade um movimento entre conceitos, logo entre uma quantidade de realidades. Contra isso não existe nenhum subterfúgio, é completamente impossível qualificar o pensamento como um rígido permanecer, como um eterno e imóvel pensar-se-a-si-mesmo na unidade. [...]’. Em seguida Nietzsche coloca a questão de que o movimento também deveria ser ‘ser’, mas ele está ‘fora do vir-a-ser, é eterno, indestrutível, não é suscetível de aumento nem de diminuição. Se a aparência deste mundo é negada com o auxílio daquela pergunta pela origem da aparência, fica ao abrigo da condenação de Parmênides o palco do
chamado vir-a-ser, a mutação.’ Cf. Nietzsche, F. op.cit., p. 84-91.

[1] Como podemos conhecer verdadeiramente alguma coisa? Relembramos outras teorias apresentadas nos diálogos platônicos: no Fédon, a teoria da reminiscência, no Fedro, a contemplação que a alma faz das Formas eternas e verdadeiras e das quais se pode lembrar através do exercício dialético. É claro que não há referência direta no Sofista, quanto a essas teorias, além do mais constitui uma imensa polêmica se Platão teria abandonado a teoria das idéias apresentada no Fédon e na República, principalmente, após ter escrito o Sofista, ou se apenas a teria reformulado, mas pensamos ser importante mencioná-las aqui.

[1] Vaz, H. L. Ontologia e História..., 1968, p. 21.
[1]‘Non, jamais tu ne plieras de force les non-êtres à être; De cette route de recherche écarte plutôt ta pensée’. Cf. Soph. 237 a. Platon. Le Sophiste. Texte établi et traduit par A. Diès. C.U.F. Paris: Les Belles Lettres, 1925.
[1] Cf. Vaz, H.L. Ontologia e história..., 1968, p. 21.
[1] Já Diès observa que ‘o argumento não é senão a transposição do ‘ser absolutamente uno’ dos eleatas para o plano lógico do discurso para confirmarem o individualismo dos sofistas e a teoria do homem-medida de Protágoras’, no entanto, é exatamente esta interpretação de Diès adotada por quase todos os especialistas que estamos refutando neste capítulo considerando o que já foi dito: como seria possível o relativismo justificado através do ‘ser absolutamente uno’? Cf. Diès, A. Notice sur Théétete. In: Platon. Théétete..., p. 141.
[1] ‘Platão cita textualmente Parmênides em cinco passagens: uma vez no Teeteto (180d), a propósito da tese da unidade e da imobilidade do Uno-Todo; uma vez no Banquete (178b), a fim de afirmar a prioridade de Eros; e três vezes no Sofista: para estabelecer, às duas reprises, a tese que o conduzirá ao «parricídio» (Sof. 237a e 258d).’ Cf. Cordero. L’histoire du texte de Platon. In: Aubenque, p. Études sur Parménide..., p. 4-5.
[1] Muito interessante a análise de Cordero em relação a possível crise que o pensamento de Platão estaria passando após a fase descrita por ele a seguir: “No que se refere a sua filosofia, Platão colocou em termos um ‘sistema’ que, em resposta ao relativismo sofístico, reivindica um conhecimento objetivo, o que supõe a realidade total e perfeita do objeto de conhecimento. Esta realidade é representada pelas Formas eternas. Estas permitem justificar ou ‘garantir’ a existência de um universo sensível, e, no que concerne à atividade humana, elas ‘causam’ nossas ações, das quais elas são a causa final. O Menon, o Fédon, o Banquete, o Fedro e outros diálogos demonstram a solidez desse ‘sistema’, cujo ápice é alcançado por volta de 370 a.C., com a República. O fundamento e os degraus do conhecimento, a justificação do saber, o estatuto das Formas, a constituição da alma, o papel [função] e a responsabilidade do filósofo, bem como uma série de questões ligadas a esses assuntos fundamentais, eis o que Platão havia tratado de uma maneira clara e distinta nesses diálogos onde a República foi seu ápice. Cf. Cordero. Introduction. In: Platon. Le Sophiste (Texte Intégral) Traduction inédite, introduction e notas por Nestor L. Cordero Paris: GF Flammarion, 1993, p.12.
[1] Cf. Vaz, H. L. Ontologia e história..., 1968, p. 22.
[1] Cf. Paviani, J. Filosofia e método em Platão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, p. 730-731.
[1] Esta estrutura ontológica estabelecida no decorrer do diálogo são as cinco Formas ou Gêneros supremos e relativos: Ser, Repouso, Movimento, Mesmo e Outro.
[1] Diès exprime, através de uma fórmula de Th. Gomperz, a ligação existente entre as duas partes do diálogo quanto ao assunto: a primeira, é a demonstração da possibilidade do erro fundada sobre o reconhecimento de uma certa realidade do não-ser, a segunda, são as definições do sofista. Como os dois assuntos têm uma relação central, podemos considerar que perpassam todo o texto do diálogo. Cf. Diès, A. Notice sur le Sophiste. In: Platon. Le Sophiste..., 1925, p. 267-268.
[1] Cf. Vaz, H. L. Ontologia e história..., 1968, p. 23.
[1] Cf. Vaz, H. L. op.cit., p. 22.
[1] A verdade reside nas Formas (eidos), na essência das coisas em si mesmas, chega-se a elas por meio da dialética. Tomamos o referido termo no sentido clássico da tradição no que se refere ao realismo: as Formas ou idéias para Platão estão numa realidade supra-sensível independentes e aprioristicamente em relação ao sensível. Cf. verbete Formas no Glossário em anexo.

[1] É complexo tentar definir o termo ‘dialética’ na obra de Platão, considerando que ele faz uso de vários métodos ao longo de todos os diálogos: nos diálogos da primeira fase Platão se utiliza do método refutativo e os diálogos terminam em aporia; na segunda fase os diálogos mostram sobretudo hipóteses, são hipotéticos; na terceira fase Platão trabalha com o método da diairesis, é o método do Sofista, uso da divisão e síntese. Desejamos somente chamar a atenção para o fim principal da dialética, pois ainda que haja diferenças entre os métodos apresentados ao longo de toda obra platônica, o importante é que todas tinham, muito provavelmente um só e grande objetivo: ascender à verdade que só pode ser encontrada no inteligível e através do exercício dialético, seja qual for que Platão tenha mantido como o ‘verdadeiro’ no final de sua vida.
[1] No Sofista Platão fornece uma definição de pensamento e discurso e logo a seguir aponta para a diferença entre ambos: ‘Estrangeiro: — Pensamento e discurso são pois a mesma coisa, salvo que é ao diálogo interior e silencioso da alma consigo mesma, que chamamos pensamento (Sof. 263e)’. Em seguida pergunta a Teeteto se ‘a corrente que emana da alma e sai pelos lábios em emissão vocal, não recebeu o nome de discurso’. E, neste, conforme segue o diálogo, há afirmação e negação, mas quando isso se dá na alma e no pensamento, silenciosamente, então o pensamento é opinião e quando esta última se associa à sensação então se tem a imaginação. Cf. Sof. 263e — 264b.
[1] O mundo metafísico e ideal, inteligível puro e transcendente e inteiramente ‘a priori’ com respeito ao sensível é tratado desde o diálogo Parmênides através da ‘discussão de Sócrates com Zenão e Parmênides que indicara a necessidade de conceber e mostrar a Sócrates o instrumento privilegiado da discussão dialética que lhe fará seguramente contemplar a verdade das Idéias: legitimar a teoria das idéias, este é o ponto central da dialética. Ela [discussão dialética] deve, diz Parmênides (Parm. 136b) tratar em última análise do ser e do não-ser, problema que o Sofista terá que enfrentar’. [...] Principalmente após a aporia do diálogo Teeteto que significou contra Protágoras, a impossibilidade de colocar o objeto da episteme no plano da sensação e da opinião. A problemática do Sofista está toda aqui. Nasce toda ela de uma aparente contradição inicial: se as idéias são unas em si mesmas, separadas e imóveis em oposição ao fluxo sensível, como podem ser objeto de uma ciência [a dialética] que procede por atribuição e negação e avança portanto através de um movimento lógico [...]?’ Cf. Vaz, H. L. Ontologia e História..., 1968, p. 18-23.


[1]‘L’Étranger — C’est que nous voilà réellement, bienheureux jeune homme, devant une question extrèmement difficile. [...] Quelle formule, en effet, trouver pour dire ou penser que le faux est réel, sans que, à la proférer, on reste enchevêtré, dans la contradiction? [...] L’audace d’une pareille assertion est qu’elle supose être le non-être: point de fausseté possible, en effet, sans cette condition. Or le grand Parménide, mon enfant, aux enfants que nous étions alors, l’attesta sans trève ni répit, en prose comme en vers: “Non, jamais tu ne plieras de force les non-êtres à être; De cette route de recherche écarte plutôt ta pensée.’ Cf. Diès. A. Platon. Le Sophiste..., 1925, p. 336.
[1] Dixsaut analisa que ‘o fato mesmo de se traduzir λoγος por «tese», nos três pedidos do Estrangeiro (como o fazem Diès e Robin), é um improviso que prejudica a análise: o logos de Parmênides será examinado em seu conteúdo, em seu enunciado (e não em seu modo de enunciação)’. Cf. Dixsaut, M. Platon et le logos de Parménides. In: Aubenque. Études sur Parménide..., p. 217.
[1] Talvez seja radical demais afirmar que Platão refuta Parmênides e comete o «parricídio» em relação ao ser absoluto, pois se considerarmos que na República o Bem é uma espécie de Primeiro Princípio, considerarmos que nas doutrinas Não-Escritas haveria um Primeiro Princípio acima de todas as outras Formas, então não haveria uma eliminação do ser absoluto parmenídico, mas uma «ampliação» através das Formas relativas. A refutação, se é possível afirmá-la em alguma parte do Sofista, daria-se somente em relação ao não-ser enquanto interdição eleata onde Platão decide ir em frente, ignorando os conselhos do pai Parmênides. Quanto à citação feita em 237a, e repetida mais adiante no diálogo, nossa hipótese é a de que Platão concorda com Parmênides quando se refere aos «não-seres».


[1] Vaz, H.L. Ontologia e História..., 1968, p. 21.
[1] Cornford traduz a referida passagem (Sof. 237a) por: ‘A audácia de tal afirmação consiste em que implica que ‘o que não é’ tem ser; porque de nenhum outro modo poderia o falso chegar a ter ser. [...] o grande Parmênides, sustentou absolutamente o contrário: Jamais se provará isto: que as coisas que não são, são; mas, tu, em tua indagação, afasta teu pensamento desse caminho’. A passagem de Cornford através da tradução espanhola: ‘Extr. La audacia de la afirmación consiste em que implica que ‘lo que no es’ tiene ser; porque de ningún outro modo podría lo falso llegar a tener ser. Pero, mi joven amigo, cuando nosotros teníamos tu edad, el gran Parménides sostuvo absolutamente lo contrario, diciéndonos a cada momento lo que también narra en su poema: “Jamais se probará esto: que las cosas que no son, so; pero tú en tu indagación, aparta tu pensamiento de esse camino."' Após, o comentador dirá: ‘falsas são as coisas que não são’. No contexto de sua análise, Cornford acaba por deixar implícito que o não-ser é o falso quando diz: ‘falsas são as coisas que não são’. Cf. Cornford, F. M. La teoria platonica del conocimiento..., 1983, p. 185-186.
[1] Platão, após estabelecer a realidade do não-ser como parte do Outro, dirá que o discurso falso é quando se toma o mesmo pelo outro e o outro pelo mesmo, desse modo, não é o não-ser que é o falso, mas a apreensão equivocada do pensamento que todavia reside no sensível.


[1] Se o ser absoluto é um ser transcendente não poderia se diluir na multiplicidade do sensível sem que deixasse de ser uno, principalmente na linguagem e nos discursos relativistas, estes seriam, no máximo tautológicos, pois com sua origem no absoluto como poderiam ser múltiplos? Se o ser absoluto é caminho de investigação que conduz à verdade como poderia estar diluído na multiplicidade do sensível? Se o ser absoluto é a própria multiplicidade como poderia ser absoluto? Se o absoluto se refere à existência de cada ser como poderia haver tantos seres individuais? Se o absoluto é imóvel e eterno, não pode ser múltiplo, nem conter movimento ou devir, isso exclui a possibilidade de que esteja presente em cada ser de forma diferente e múltipla, também no pensamento e no discurso. Os especialistas procuram pelo sujeito do verbo « ser » de Parmênides, mas pensamos que o problema está anteriormente ao sujeito, está em ser absoluto, pois não mudaria o problema classificá-lo em existencial, veritativo ou predicativo: se for existencial, como pode ser múltiplo na existência de tantos seres? se for veritativo como pode ser a verdade se os seres são os mortais da terceira via? se é predicativo como poderia ser absoluto predicando coisas diferentes à toda multiplicidade do mundo das aparências? Assim, optar por este ou aquele sujeito não elimina o problema que é anterior a tais classificações: está em ser absoluto.
[1] A conclusão, segundo Lima Vaz é a seguinte: se ‘o não-ser se apresenta como impensável, impronunciável, é incapaz, portanto, de ser expresso pelo discurso. Cf. Vaz. Ontologia e história..., p. 25.
[1] ‘O estudo da idéia de imagem é, entretanto, uma caixinha de surpresas: desde que se retire a tampa, essa caixinha — como a jarra de Pandora — deixa escapar uma série interminável de problemas. São esses problemas que puseram Platão a escrever o Sofista. “Que uma coisa apareça ou pareça, sem, entretanto, ser, e dizer alguma coisa, sem entretanto dizer a verdade, eis que tudo isso está cheio de dificuldades, não somente agora e no passado, mas sempre. Pois é totalmente difícil de encontrar um meio para explicar que dizer ou pensar o falso, seja real, sem ser enredado em uma contradição quando se pronuncia isto.” (236e). Essa passagem é um verdadeiro programa de ação. Falar de “imagem” supõe a possibilidade de dizer (legein) e pensar o que é falso, e isso supõe, como fundamento, que o não-ser existe. Se a argumentação consegue demonstrar que tudo isso é possível, o sofista é um falsificador; se ele não consegue, o sofista é absolvido.’ Cf. Cordero. Introduction. In: Platon. Le Sophiste..., 1993, p. 36.
[1] Cf. Marques, M. L’aporie de l’image. In: L’autre et les autres: a propos de l’altérité dans le Sophiste de Platon. França: Universite de Sciences Humaines de Strasbourg, 1997. p. 176.
[1] A expressão ‘todas as coisas’ é utilizada por Platão várias vezes no Sofista, entendemos como referindo-se à ontologia capaz de explicar a origem da realidade sensível. Em 233e, Platão usa a expressão para criticar a atividade dos sofistas que se afirmavam capazes, ‘não de explicar nem contradizer, mas de produzir e executar, por uma única arte, ‘todas as coisas’ (Sof. 233d). Nessa passagem Platão se refere claramente a uma metafísica, pois realiza uma crítica aos sofistas os quais se fazendo passar por aqueles que criam o próprio mundo, como pretensos deuses, ‘criam’ a realidade sensível, para Platão esta possui sua origem em uma realidade ontológica. A passagem seguinte já aparece na República (Rep. 596c) com alguma variação, citamos aqui a da continuidade do Sofista: ‘ Estrangeiro: Ora, minha expressão ‘todas as coisas’ quer dizer tu e eu e, além de nós, tudo o que mais há, tanto os animais como as árvores’ (Sof. 233e) ‘o mar, a terra e o céu, e os deuses e tudo o mais. Produzindo de um só golpe, uma e outra destas criaturas, ele as vende por uma quantia bem pequena.’ (Sof. 234 a) O descaso dos sofistas com a verdade-ontológica do mundo das Formas é ironica e severamente criticado por Platão nesta passagem: As artes ilusionistas: a mimética (Sof. 233b — 237a) a qual é classificada pela maior parte dos comentaristas como constituindo a sétima definição do sofista. Cf. trad. Paleikat. Sofista. p. 151.
[1] Importa observarmos o significado de mímesis: ‘imitação’: ‘ele [o sofista] está incluído na arte da mimética [...] a imitação é, na verdade, uma espécie de produção; produção de imagens, certamente, e não das próprias realidades.’ Cf. Sof. 265b.
[1] Vaz diz que ‘se a “imagem” se impõe ao “verdadeiro” e o verdadeiro é o “ser realmente tal” deve-se dizer que a imagem é um “não-ser realmente tal”. A tradução é polêmica entre os especialistas, assim como Lima Vaz, pode-se ler da mesma maneira em Burnet, Cornford e outros. ‘Mas como mostrou este último, a construção é impossível em grego e dá um sentido falso: a imagem não é um ‘não-ser absolutamente’, pois tem um ser de semelhança. Devendo-se manter a leitura de b7 e traduzir: “Assim, o que chamamos imagem, é realmente um não-ser real?” Cf. Vaz. Ontologia e história..., p. 25-26. No entanto, nossa interpretação a partir da tradução de Paleikat, funcionaria da mesma forma segundo a tradução de Lima Vaz, pois na medida em que se pergunta pela imagem como sendo realmente um não-ser real, podemos responder que não, a imagem não é um ser real enquanto Forma do não-ser, logo irreal, portanto, a tradução utilizada por nós —“não-ser irreal” — não compromete nossa interpretação.
[1] Cf. Cornford, F. M. La teoria platonica del conocimiento..., 1986, p. 183.
[1] Pensamos haver no início do Sofista uma espécie de pré-explicação sobre a opinião falsa quando o Estrangeiro diz: — ‘Pois bem! Não notamos que na alma dos maus há um desacordo mútuo e geral entre opiniões e desejos, coragem e prazeres, razão e sofrimento? (Sof. 228b). Platão provavelmente já se refere nessa passagem a uma falsa apreensão das Formas puras e uma comunhão desordenada o que conduz a alma não só para a falsidade, mas igualmente para o distanciamento do Bem, ainda que ele não faça referência no Sofista a alguma forma suprema que estaria acima das cinco estabelecidas no diálogo como uma espécie de princípio supremo.
[1] Cf. Luft, E. Contradição e dialética..., 1996, p. 477.
[1] ‘O argumento dialético está no entrelaçamento, symploké, das idéias que dão origem ao discurso’. Paviani observa que este entrelaçamento dá origem a diversas dificuldades: ‘a do entrelaçamento das idéias com os nomes; a da relação de compatibilidade ou incompatibilidade entre idéias; o do entrelaçamento das idéias não ditas e dos gêneros supremos; o da relação entre a natureza do discurso com o não-ser’. Cf. Paviani. Filosofia e método em Platão..., p. 188. Essas dificuldades se dão já num nível da própria linguagem e do discurso, portanto, se referem já à ‘participação’ das Formas supremas no sensível, importa, por isso, dizer que nossa intenção é procurar entender sobretudo o caminho percorrido por Platão no que se refere a sua ontologia: em como ele chegou a estabelecer a realidade do não-ser e posteriormente em como a opinião falsa pode ser explicada a partir disso. Contudo não é possível, dada a complexidade do assunto, nos determos detalhadamente na questão da linguagem e do discurso além de uma explicação que vise diretamente à da opinião falsa sem nos atermos nas inúmeras questões que esse assunto suscita.
[1] Pois tomam o Mesmo pelo Outro e o Outro pelo Mesmo, um exemplo poderia ser: tomam a herística como ciência suprema ou tomam a dialética como herística reduzindo a busca da sabedoria a uma mera disputa verbal pela própria disputa.
[1] Cf. O’Brien. Le non-être..., 1995, p. 11.
[1] Cf. Vaz. Ontologia e história..., 1968, p.
[1] Cf. Vaz. op.cit., p.
[1] Cf. Marques. O caminho poético de Parmênides..., 1990, p. 14.
[1] Cf. Diès. Notice sur Le Sophiste..., 1925, p. 274.
[1] Cf. Diès. op.cit. p. 272-274.
[1] Cf. Cornford. La teoria platonica del conocimiento..., 1983, p. 199.
[1] Sobre essa análise ver a exposição de A. Diès. Cf. Diès. Notice sur Le Sophiste..., 1925, p. 290-292 .
[1] ‘Os Amigos das Formas — únicos detentores da verdade no tempo em que Sócrates possuía o papel principal — serão colocados no Sofista no mesmo nível que seus opositores, os Filhos da Terra. E, enfim, a nova filosofia a qual Platão fará o elogio (a técnica dos homens livres, que faz seu caminho no meio do lógoi: a dialética) será muito afastada do ofício desses curandeiros-purificadores.’ Cf. Cordero. Introduction. In: Platon. Le Sophiste..., p. 30.

[1] Ritter citado por Ross. Cf. Ross. La teoría de las ideas de Platon..., p. 127-135.
[1] Cf. essa exposição sobre os Amigos das Formas em Ross. La teoría de las ideas de Platon..., p. 127-135.
[1] Cordero analisa que ‘as duas posições [...] representam os dois princípios fundamentais para explicar a realidade. Mas esses dois princípios são opostos. [...] A solução que Platão encontrará deve se apoiar sobre a coexistência necessária de dois sistemas opostos. Por que os dois sistemas são opostos? Um afirma que a realidade existente é constituída por Formas inteligíveis e incorporais (246b9), enquanto que, para o outro, tudo que é real [depende] dos corpos (246b1). As Formas, por exemplo, enquanto indestrutíveis, eternas, inalteráveis e imutáveis, supõem, como fundamento, o repouso. Os corpos [...] supõem a mudança.. Além disso, o corpo é, por excelência, aquele que é animado (246e5), e os Gregos sabem desde — pelo menos — a época de Homero que a alma é sinônimo de movimento. Confrontado com essa oposição, Platão poderia ter seguido o exemplo de seus predecessores: escolher um dos dois lados. Mas ele preferiu fazer como as crianças em seus desejos: ele escolheu... os dois (249d3), e ele demonstrou para cada oposição que a outra parte tem, ela também, razão. Os Amigos das Formas fizeram do conhecimento a atividade principal do filósofo [...] devem então admitir a realidade da mudança. Senão, eles deveriam negar a possibilidade do conhecimento. Mas os ‘materialistas’ devem admitir, de seu lado, que o conhecimento supõe um objeto estável, pois, ‘se tudo se desloca e muda, o intelecto (logos) será excluído dos seres” (249b). Cf. Cordero.
Introduction. In: Platon. Le Sophiste..., p. 16-33.


[1] Na Carta VII, Platão fala a respeito da definição tomando como exemplo o nome: 'O nome, afirmamos nós, não tem qualquer fixidez. Quem pode impedir que se chame direito ao que nós chamamos circular ou circular ao que nós chamamos direito? O valor significativo não será menos fixo mesmo que se faça esta transformação e se modifique o nome. Diremos o mesmo da definição, já que é composta de nomes e verbos: nada tem de suficientemente sólido. [...] Não é a qualidade, mas a essência que a alma procura conhecer. Cada um dos quatro modos dão o que ela não procura; tanto nos raciocínios como nos fatos.' É possível pressupor que as definições dadas pela linguagem não são suficientes para que a alma conheça aquilo que realmente é: as essências, Formas, idéias ou ainda, nas palavras de Lima Vaz: 'o real realíssimo'. Cf. Platão. Carta VII. 3. ed. Lisboa: Estampa, 1989. p. 75-76.
[1] Os especialistas tendem a elaborar interpretações a partir da solução de Platão ao estabelecer Formas relativas na sua ontologia. Como exemplo disso, expomos aqui a interpretação de Cordero ao afirmar que o não-ser não se constitui como ‘coisa em si’, pois não concordamos com a posição do comentador em relação a este ponto específico. Cordero diz: ‘O entusiasmo de Platão excede sua solução. Da relação recíproca dos gêneros, Platão tirou como conseqüência que o não-ser, em relação a cada Forma, é o que ela não é. [...] Contudo, em todos os casos, o não-ser foi definido em relação a alguma coisa. Trata-se inteiramente de um não-ser, mas relativo: não-ser é não-ser-X. [...] Desde que se suprima X, o não-ser desaparece. Não há, apesar do que Platão disse um não-ser em si. É seu entusiasmo que o tem talvez enganado, mas de seus exemplos, de seu caminho e de seu método, nós não podemos tirar esta conclusão’. Se ‘desde que se suprima X, o não-ser desaparece’ e, então, ‘não há, apesar do que Platão disse, um não-ser em si’, suprimindo X estaríamos suprimindo as partes do Outro dentro da estrutura ontológica, elas só ‘existiriam’ a partir de uma relação feita no intelecto e através do logos. Mas como poderíamos fazer uma relação a partir de uma espécie de ‘nada’ ou de um ‘nada’ que estaria em contínuo vir-a-ser alguma coisa para que tais relações pudessem ser feitas? Seria preciso substituir o então provisório não-ser-suprimido por outra coisa, que seria um ‘nada’ perdido dentro de uma estrutura ontológica. Cordero esquece a passagem em que logo após a definição de não-ser (Sof. 257c) Platão diz: 'Logo, o não-justo deve colocar-se, também, na mesma medida que o justo, na medida em que, de maneira alguma, um não é mais ser que o outro. [...] O mesmo se dirá de todo o resto, pois que a natureza do outro, pelo que vimos, se inclui entre todos os seres; e se ela é, é necessário considerar as suas partes como seres pela mesma razão que o que quer que seja. [...] Assim, ao que parece, quando uma parte da natureza do outro e uma parte da natureza do ser se opõem mutuamente, esta oposição não é, se assim podemos dizer, menos ser que o próprio ser; pois não é o contrário do ser o que ela exprime; e sim, simplesmente, algo dele diferente (Sof. 258 a — 258b). Cordero também parece colocar de lado o fato de que Platão estabeleceu a realidade do não-ser como Forma que constitui o Outro, como uma Forma poderia às vezes ser e às vezes não ser uma ‘Forma’? — ainda que derivada ou ‘dividida’ — tendo em vista que possui existência ontológica? O especialista ainda diz: se a ‘negação [é] suprimida, a divisão não existe mais.’ A divisão não existir mais em relação a alguma coisa, não significa necessariamente que as suas partes não existam, mas que apenas não participam ou não estão presentes no sensível em todos os seres e em todos os lugares por todos os momentos, mas por certo estão presentes em algum ser em um dado momento. Além disso, se aceitássemos o raciocínio do Cordero teríamos que derivar para: aquilo que não tem sua participação no sensível significa que da forma X ela passou para um estado de ‘nada’. Depois, uma coisa é o não-ser depender de uma relação para poder ser dito, pronunciado, pensado, outra é pensar que se não há pensamento e discurso sobre algo determinado afirmar que esta forma: não-x não exista, pois ela pode não ‘estar’ no pensamento do filósofo, por exemplo, e estar no pensamento do ‘sofista’_ em algum lugar do sensível ela provavelmente terá sua presença e se seguirmos nesse raciocínio do Cordero teríamos que aceitar que existe ou uma regressão de formas ao infinito para cada intelecto: um Ser, um Repouso, um Movimento, um Outro e um Mesmo ‘personalizado’ para cada homem, e multiplicado ao infinito; ou, de outro lado, retornar ao problema de Parmênides só que em vez de absolutizar o ser, o faz com o não-ser na medida em que ele parece tomar como ponto de partida, no que se refere a sua afirmação, exclusivamente ‘um intelecto’, se para ‘este intelecto determinado’ não cabe a forma do não-justo em dado momento e lugar, então ele desaparece, não existe. Seria uma maneira de colocar o não-ser como algo absoluto em função de que ele parece excluir a multiplicidade de ‘pensamentos’ que existem em inúmeros seres. Estabelece um limite que não poderia ser ‘justificado’ se pensarmos na multiplicidade de seres que pensam. Como poderia não existir uma das partes do não-ser em momento algum em nenhum pensamento ou coisa sensível? Nesse aspecto, se o ser é tão ser quanto o não-ser [e este, segundo Platão, são as partes do Outro] é necessário que existam as «subformas» que pertencem ao Outro, sua essência deve existir ainda que não seja dirigida a todos os seres, pois nem todos terão a mesma participação das partes da Forma Outro, em todos os momentos e em todos os seus pensamentos, pois isso igualaria o discurso tornando tudo que é pensado e dito o «mesmo». Enfim, pensamos que o não-ser não fazer parte de um Ser específico não significa ‘desaparecimento’ entre os gêneros supremos, pois não existe somente um ‘ser’, mas múltiplos. Analisando de outra maneira, Cordero parece cair no mesmo problema de Parmênides e de uma certa maneira trabalhar com algo que chega perto do ‘absoluto’. O que ele afirma absolutizaria, em certo sentido, o não-ser. Nega a multiplicidade dos seres se apoiando em uma afirmação que só faz sentido se o intelecto para o qual ele direciona tal negação do não-ser
em si, suprimido-o, fosse tão e exclusivamente de um único intelecto. Mas não existe um, existe uma multiplicidade de seres que pensam_ e existem as Formas, universais. Assim, nossa posição é a de que o não-ser como parte constitutiva da Forma Outro é uma coisa em si tanto quanto os outros gêneros supremos estabelecidos no Sofista. Cf. Cordero. Introduction. In: Platon. Le Sophiste..., 1993, p. 64-65.


[1] A natureza do Outro divide-se do mesmo modo que a ciência. Fica implícito aqui a diairesis como método de divisão das Formas entre si mesmas, há, portanto, uma diairesis que perpassa a Forma do Outro constituindo suas partes. No Sofista, Platão fornece três exemplos: não-grande, não-belo e não-justo, mas só este último é um exemplo de partes do Outro que se constitui em uma Forma abstrata de valor.
[1]Platão parece ligar o termo «não-seres» ao discurso falso e não o termo «não-ser», pois faz referência duas vezes a Parmênides com a mesma passagem: ‘Jamais obrigarás os não-seres a ser’ (Sof. 237b e 258d), nesta última referência, Platão diz: ‘Não nos contentamos apenas em demonstrar que os não-seres são, mas fizemos ver em que consiste a forma do não-ser’ (Sof. 258d), disso decorre que se interpretamos «não-seres» como o mesmo que «não-ser» teríamos que admitir que Platão inclui os sofistas e a falsidade diretamente na estrutura ontológica, coisa que seria um contra-senso, consideramos então que os «não-seres» se referem às coisas que não são, em outras palavras, às imagens criadas pelos sofistas, os não-seres se ligam às cópias, àquilo que as coisas não são em seu real realíssimo — as Formas em si mesmas — o não-ser é que é parte de um dos gêneros supremos. Em nenhuma parte do diálogo Platão se refere ao não-ser no plural quando está tratando dos gêneros supremos.
[1] Agradeço ao Doutorando Nazareno de Almeida, por ter me chamado a atenção para este segundo termo utilizado por Platão no Sofista: allós, por meio do qual foi possível a seguinte pergunta: por que razão Platão utilizaria dois termos para a forma do Outro? — o que resultou nas derivações deste subcapítulo.
[1] No Lexique de la langue philosophique et religieuse de Platon o termo «allós» é definido como 'outro que não as Formas'. Cf. Platon. Oeuvres Complètes: Lexique de la langue philosophique et religieuse de Platon. Paris: Les Belles Lettres, 1970. p. 30. Agradeço ao Prof. Dr. Eduardo Luft por ter me chamado a atenção para este ponto sugerindo que seria importante conferir todo o diálogo Sofista com a finalidade de examinar se Platão realmente teria usado sistematicamente a diferença entre os dois termos utilizados como «outro», para só após chegar realmente a concluir que heteron se refere à Forma em si mesma (Outro) e allós a outro que não as Formas.

[1] Isto gera um outro problema: a condição de possibilidade permite ainda que as Formas sejam perfeitas, eternas e imutáveis? Isto toca diretamente numa questão extremamente controversa entre os especialistas: após o Sofista é ainda possível uma teoria das idéias? Platão realmente teve uma teoria das idéias? Para responder a pergunta colocada inicialmente seria necessário um estudo sobre a teoria das idéias após o Sofista, no momento podemos unicamente dizer que, a princípio, a «condição de possibilidade» é dada pelas Formas enquanto relativas, já que existe Movimento entre as Formas através da participação, isto é, através da existência ou da realidade do Mesmo e do Outro, do Repouso e do Movimento, é que se pode ‘tomar o outro pelo mesmo e o mesmo pelo outro’, assim, embora as Formas em si mesmas não constituam a falsidade a «condição de possibilidade» se daria pela inversão do Mesmo e do Outro — no pensamento — originando a falsidade, mas isso não se refere mais às Formas em si mesmas na estrutura ontológica e sim elas "agindo" no pensamento do sofista, por exemplo, que todavia está no sensível e não lá entre as Formas. O Outro é que dá condições para a multiplicidade/diversidade dos seres, mas é pela sua apreensão "equivocada" que tal condição de possibilidade se torna possível enquanto falsidade. Por outro lado, é pela apreensão correta que o discurso do filósofo também é possível como verdadeiro. Não exclui que as Formas sejam perfeitas — pois embora a participação, todas são perfeitas — e eternas; quanto à imutabilidade, num certo sentido são imutáveis porque conservam sua Mesmidade ou Identidade, num certo sentido não são imutáveis, em termos do Movimento, por causa da participação estabelecida entre elas e delas para o sensível. A imutabilidade, a princípio, excluiria o Movimento, talvez pudéssemos falar em uma imutabilidade quanto à «essência» que cada Forma conserva de si própria — como uma «parte» de cada gênero supremo, parte esta que não conteria mudança, pois caso contrário, elas sequer permaneceriam como tais, por exemplo, o Movimento «é» ele mesmo e nenhuma das outras Formas.
[1] EDUARDO LUFT (eluft@zaz.com.br) Re: Não-ser. 15 ago. 2002. Enviado às 11h07min. Mensagem para: Sandra Adriana Fasolo.
[1] Esta distinção entre a symploké do não-ser como forma suprema — que possibilita o discurso verdadeiro — e o não-ser que acaba se voltando para o discurso falso, já pode ser vislumbrada no Sofista 240b, que comentaremos um pouco mais à frente no texto.
[1] MARCELO PIMENTA MARQUES (marquess@dedalus.lcc.ufmg.br.) Re: Parmênides e Platão. 17 nov. 2002. Enviado às 13h26min. Mensagem para: Sandra Adriana Fasolo (s.fasolo@terra.com.br).
[1] Seria extremamente importante abordarmos a questão da dynamis e da linguagem a partir do Sofista, contudo, ultrapassa ao que nos propomos aqui, então, apenas colocamos brevemente o principal problema no que se refere à linguagem e uma possível explicação. Em Platão seria difícil aceitar que o logos pudesse vir a ser algo que ao menos não se encontra entre as Formas como um ‘elemento inteligível’ dada a importância do pensamento (‘da alma consigo própria ou do pensamento exteriorizado’, os quais possuem uma relação direta com a ciência suprema e universal: a dialética. E como isto recai sobre o particular — é sempre um ser individual que pensa e exterioriza o seu pensamento — a questão colocada é: como Platão não estabelece a linguagem como uma das Formas supremas, ele apenas a usa como exemplo de diairesis no Sofista provavelmente com vistas à dialética, como é possível que a linguagem seja ou esteja entre os elementos do inteligível sem ser ela própria uma das Formas? A questão da correspondência entre o nome e a coisa, entre o logos e a realidade traz implícita o eidos. O problema, como explica Marques, é que não há uma Forma para o nome e então a explicação possível deve ser desenvolvida a partir de uma ‘relação’ que inclui sempre a alteridade, poderíamos dizer, inclui necessariamente a Forma do Outro estabelecida no Sofista, pois Platão não aceita nenhuma das suas teses expostas no Crátilo: essencialista e convencionalista. A compreensão do problema se dá, então, a partir do Sofista: o Outro possibilitaria a relação entre o nome e a coisa a partir da idéia de que o nome é o Mesmo, enquanto ele próprio, mas é Outro que a coisa nomeada e Outro ainda quando da união com ela_ haveria assim uma tripla participação do Outro no processo de significação e correspondência do nome à coisa sensível. O objeto é o Mesmo enquanto ele próprio em seu ser particular, mas Outro que o nome, e Outro ainda a partir da união dada por tal relação ontológica-sensível, possibilitando assim a significação do nome à coisa no dizer verdadeiro, na justeza do nome. Ao contrário, quando se une um nome e um objeto partindo de Outro que ele mesmo o discurso falso toma o lugar do verdadeiro. É aquilo que Platão diz no Sofista: o discurso falso é quando se diz aquilo que não é, este ‘não-é’ compreendido não como a Forma do Outro-Não-ser, mas como tendo sido estabelecido a partir mesmo de um Outro que não corresponda à symploké dando origem ao não- verdadeiro, falso, portanto. Nesse ponto a figura do legislador ou do dialético tem papel ímpar, pois eles desejam a verdade ou a justeza dos nomes e assim o contemplar possibilita uma maior aproximação dessa justeza com o pensamento e a symploké entre as Formas supremas. Pode-se até mesmo pressupor que o discurso falso teria seu início na menor unidade do logos — o logos é mais amplo que um nome apenas, deve ser visto como discurso articulado e não somente como um nome isolado — a partir do qual dada a falsidade da relação entre o nome e o objeto, entre um simples nome, como se poderia esperar que o discurso — ou o diálogo da alma consigo mesma ou exteriorizada — pudesse vir a ser um discurso verdadeiro se o pensamento já parte, em sua menor unidade, de uma falsa relação ou correspondência? Canto, pergunta ‘o que é então essa forma do nome que tira seu ser da relação do nome com a coisa?' Ela define a essência do nome, enquanto se 'relaciona' a um ser. Quando Canto diz: tira seu ser, está falando da significação ou significado atribuído ao nome em questão. Mais à frente ela fará referência ao legislador-demiurgo (Crat.389 a) o que retorna o problema novamente para a ontologia platônica. Contudo não se pode passar por cima do que o próprio Platão escreveu nos diálogos e assim, o mínimo que se pode dizer é que não se pode dizer que existe uma Forma específica para a linguagem, ao menos não entre os gêneros supremos estabelecidos no Sofista e que a compreensão deve passar por um pensamento que pense a relação de alteridade (Outro-Não-ser) entre as coisas e as palavras com vistas a uma relação entre as ‘coisas’ e a justeza dos nomes que, por sua vez, conduzem ao discurso articulado. Para estas análises ver o artigo de Monique Canto e um capítulo da Tese de Marcelo Marques. Cf. Canto, M. Le premier nom du signe. Le sémeion dans la pensée platonicienne. Actes du Colloque de Cerisy. Dir. Petito, J. Ed. Patino, 1988, p.497-509. Marques, M. Le discours: liaisons, altérité, fausseté. L’autre et les autres: a propos de l’altérité dans le Sophiste de Platon..., p. 316-339.
[1] Cf. Vaz, Ontologia e história..., 1968, p. 57.
[1] 'Platão não condena o uso da antilogia em si, mas sua utilização abusiva e sobretudo fora de uma perspectiva dialética maior. De fato, ele não poderia simplesmente negar a validade de um procedimento consagrado na prática por Sócrates. A antilogia aproxima-se muito do élenkhos socrático, tal como ele é retomado por Platão nos diálogos: partir da resposta inicial do interlocutor e levá-lo pouco a pouco a aceitar afirmações que se opõem diretamente à afirmação inicial, chegando a um ponto no qual ele é obrigado a negá-la, criando assim uma situação tipicamente antilógica, na qual duas teses contraditórias são postas uma em frente a outra.' Cf. Marques. O sofista: uma fabricação platônica? Kriterion, Belo Horizonte, n.102, p.84,
2000.

[1] Cf. Paviani, J. Filosofia e método em Platão..., 2001, p. 188.
[1] * Os termos com asterisco correspondem às definições do glossário pertencente à obra de Jayme Paviani. Cf. Paviani, J. Terminologia. In: Filosofia e método em Platão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, p.252-256.
[1] Cf. o respectivo verbete em Ferrater Mora, J. Dicionário de filosofia. p. 858.
[1] Cf. Reale, G. História da filosofia antiga: a teoria das idéias. p 63.

[1] Cf. VAZ, Lima. Ontologia e história..., 1968, p. 22.
[1] Tabela elaborada a partir da estrutura estabelecida por A. Diès. Cf. Platon. Ouvres Completes, Tome VIII, 3 ª partie. Paris: Société D’Edition ‘Les Belles Lettres’, 1950. Texte établi et traduit par Auguste Diès. a E estrutura estabelecida por J. Paleikat é exatamente igual à da edição francesa. Cf. Platão. Sofista. In: Diálogos. São Paulo: Abril Cultural, 1983. Coleção Os Pensadores. Tradução de J. Paleikat e J. C. Costa.
[1]Após o Estrangeiro ter sido apresentado a Sócrates, o diálogo seguirá com a discussão filosófica, com o próprio hóspede de Eléia, perguntando sobre quem seja o sofista (Sof. 216a — 218b) ou antes: de que maneira o sofista e o político podem se distinguir do filósofo — se é que se distinguem? (216d) Depois da introdução e das duas partes seguintes: O diálogo entre o Estrangeiro e Teeteto: definição do sofista (218c —221c) e A aplicação do método na definição dos sofistas (221d — 222a) Platão fará um série de divisões para analisar a arte da sofística. Depois da série de divisões (222a — 237a) sobre a definição do sofista, Diès destaca onde inicia realmente O problema do erro e a questão do não-ser: 237a — 259d. Após segue com A possibilidade da falsidade no discurso e na opinião (260a — 264b). O diálogo terminará numa revisão das definições através da aplicação da realidade do não-ser à possibilidade do erro e do discurso, na opinião e na imaginação a partir da reformulação da tese de Parmênides. Platão demonstrará por meio da argumentação de uma nova estrutura ontológica, onde introduz o não-ser relativo e a combinação das Formas supremas, que os sofistas possuem uma arte essencialmente de ilusão, o sofista é um possuidor da arte de imitação ou mimética (264c — 268d) — fim do Diálogo Sofista.
[1] Tabela elaborada a partir do esquema do especialista no pensamento de Platão, N. L. Cordero. Introduction. In: Platon. Le Sophiste (Texte Intégral) Traduction inédite, introduction e notas por Nestor L. Cordero Paris: GF Flammarion, 1993, p. 64-65.
[1] Tabela anexada à Tese de Doutorado do Prof. Dr. Marcelo Pimenta Marques. L’autre et les autres: a propos de l’altérité dans le Sophiste de Platon. França: Universite de Sciences Humaines de Strasbourg, 1997, p. 430.
[1] Tabela elaborada a partir da estrutura estabelecida por J. Paleikat. Cf. Platão. Sofista. In: Diálogos. São Paulo: Abril Cultural, 1983. Coleção Os Pensadores. Tradução de J. Paleikat e J. C. Costa.

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Poesia. Poema. Mar. Poemar. "O homem só ensina bem o que para ele tem poesia" Rabíndranáth Thákhur_Tagore.